Críticas à política industrial de volta ao passado padecem do mesmo pecado
Pontos da nova política industrial, ambicioso programa de estímulos à indústria lançado pelo governo Lula nesta segunda-feira (22), foram criticados como tentativas de volta a um passado que não deu certo. Mas essas críticas sofrem do mesmo mal: são baseadas em visões do passado.
Pode ser que o plano "Nova Indústria Brasil", o nome fantasia dado pelos marqueteiros do governo a um amplo conjunto de incentivos — fiscais, financeiros e de facilidades de mercado, caso de compras governamentais a produtos com conteúdo local — seja mais do mesmo que têm sido as tentativas de emplacar políticas industriais, nos últimos muitos anos. Ainda é muito cedo para uma conclusão definitiva.
Pode ser também que, como ironizava o economista, diplomata e ministro Roberto Campos, ao avaliar políticas púbicas, que o programa tenha ideias novas e boas — pena que as novas não são boas e as boas não são novas.
Preconceito contra políticas industriais
De todo modo, as críticas, pelo menos no primeiro momento, também são mais do mesmo. Não são, igualmente, novas e nem são boas. Da mesma maneira que reclamam do novo programa, que repetiria erros antigos, estão baseadas em visões do passado.
Em resumo, o governo divulgou, com o pecado original da insuficiência de detalhes, um programa de financiamento de R$ 300 bilhões até 2026, com protagonismo do BNDES, para, até 2033, induzir o setor industrial a cumprir metas relacionadas com a transição ecológica e a modernização do parque produtivo. Seis setores — agroindústria, saúde, infraestrutura urbana, tecnologia da informação, bioeconomia e defesa — são os alvos diretos.
As críticas endereçadas ao programa têm o sabor do preconceito liberal contra políticas industriais induzidas pelo Estado. Mas o fato é que está em curso no mundo todo uma profunda revisão dos conceitos que orientaram as políticas econômicas, nas últimas décadas. Consequências da crise de 2008, aprofundadas pela pandemia de covid-19, estão alterando o padrão de produção global.
"Reshoring" é a nova onda
Depois de uma fase de integração horizontal envolvendo países diversos, as cadeias de produção estão, mais uma vez, se deslocando — na forma de produção e onde se dá a produção. A onda agora é o "reshoring" — a ideia de trazer de volta para casa, ou para perto de casa, a produção que foi terceirizada para outros, principalmente os asiáticos. É nisso, por exemplo, que os Estados Unidos, com um programa de mais de US$ 1 trilhão, estão apostando.
Este novo ambiente encontra a economia brasileira diante de uma tragédia: a desindustrialização precoce da economia e a persistente queda de produtividade, que se arrasta por quatro décadas. É isso que precisa ser revertido, para que o país possa aproveitar a nova onda.
Levantamentos do economista Ricardo Barboza, pesquisador associado do Ibre-FGV (Instituto Brasileiro de Economia, da Fundação Getúlio Vargas), aponta recuo na PTF (Produtividade Total de Fatores), índice que mede a eficiência da produção econômica, de 36,8%, entre 1980 e 2023.
A produtividade da economia brasileira está em queda livre nas últimas décadas, por qualquer medida de PTF que se queira usar, não importando o governo e a ideologia de plantão. Como reverter esse quadro é o grande desafio da nossa política econômica. pic.twitter.com/cnbnPiNggx
-- Ricardo Barboza (@menezes_barboza) January 16, 2024
Eficiência econômica desceu a ladeira
É uma queda muito forte, mas Barboza lembra que essa perda não é exclusividade brasileira, sendo também sentida por outros países da América Latina ou com estruturas de produção semelhantes à brasileira, como a África do Sul. No período de pouco mais de quatro décadas, a PTF do México recuou 27%, a do Chile, 21% e da África do Sul, 27%.
Enquanto a eficiência produtividade declinava na região, e em outros emergentes com estruturas produtivas parecidas, China, Coreia e Taiwan davam saltos na PTF. Entre 1980 e 2023, a PTF na China cresceu 130%, enquanto na Coreia o pulo foi de 118%, e em Taiwan, de 98%. Já nos Estados Unidos, a produtividade avançou menos de 15%, no período.
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Quero receberO economista ressalta que, no Brasil, as perdas na PTF não foram homogêneas. Ele cita o exemplo do setor agrícola brasileiro, que foi o campeão mundial de produtividade, China inclusive, nos últimos 20 anos.
Barboza também destaca que, com exceção do setor agrícola, de 2016 a 2023, período em que, no Brasil, os governos Temer e Bolsonaro empreenderam reformas e políticas liberais, a PTF continuou em descida. O recuo foi de 6,5%, no período, superando a média de seis países latino-americanos e da África do Sul, com queda de 5%.
"A agenda de reformas, a partir de fins de 2016, não alterou a direção da perda de eficiência da economia. Ou seja, depois de um longo período, em que se alternaram diferentes governos, regimes políticos, ideologias e políticas econômicas, não houve alterações para melhor". Ricardo Barboza, pesquisador associado do Ibre-FGV.
É importante não esquecer, quando se observa uma curva de PTF, que este é mais um conceito econômico controverso. Não há medida observável de PTF e, portanto, é necessário formular hipóteses e adotar premissas prévias para determiná-la.
Identificar os recursos aplicados na economia, medir cada um deles e combiná-los em suas formas de produção é tarefa de altíssima complexidade. De modo simplificado, explica Barboza, pode-se entender a PTF como o conjunto de tudo que não consegue ser diretamente medido nos fatores econômicos. Por isso, entre os economistas, a PTF é conhecida como a taxa que mede a ignorância na profissão.
O que explicaria o desastre?
No caso brasileiro, contudo, há convergência no cálculo de três instituições independentes, que se dedicam a estimar e determinar a evolução dos principais indicadores macroeconômicos — a brasileira FGV e as globais Conference Board e PWT (Penn World Table). Todas apontam não só a mesma direção, mas também ritmos e níveis semelhantes na descida da ladeira da PTF.
Assim como a determinação da PTF não é consenso, dependendo de múltiplos elementos, as explicações para a longa e persistente má alocação dos recursos na economia não são unanimidade. Algumas hipóteses, segundo o pesquisador Ricardo Barboza:
As normas tributárias foram piorando com o tempo, tornando-se mais complexas, acomodando isenções e regimes especiais em excesso, o que resultou em estímulos equivocados à produção;
Ocorreram, nesse espaço de tempo de quatro décadas, mudanças importantes nos padrões globais de produção, com Brasil e outras economias perdendo atividades produtivas, principalmente para países asiáticos;
Ambiente de negócios ruim — leis e normas trabalhistas em excesso, insegurança jurídica, resistências em abrir a economia, ampliação do oligopólio financeiro, com a resultante de crédito caro e escasso, proteção setorial etc. —, desembocando em problemas de competitividade.
É diante dos desafios de reverter a baixa eficiência econômica, reforçadas por um longo período de perda de competitividade, que as análises do novo programa de política industrial deveriam focar. Não levará a nada martelar velhos fantasmas, como os de que a nova política industrial voltará a escolher "campeões nacionais" e a distribuir subsídios sem contrapartidas ou metas a serem cumpridas.
A pergunta a ser feita, então, é se gargalos competitivos serão desfeitos com o novo programa, assegurando crédito acessível, dinâmica a mercados e estímulos à inovação. Se, enfim, o programa facilitará o ingresso da indústria brasileira na onda do "reshoring" em que o mundo está embarcando.
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