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Reinaldo Polito

OPINIÃO

Lula voltou a ser um ótimo orador, mas não dá exemplo na prática

04.05.23 - O presidente Lula (PT) recria o Conselhão no Palácio Itamaraty - Ricardo Stuckert
04.05.23 - O presidente Lula (PT) recria o Conselhão no Palácio Itamaraty Imagem: Ricardo Stuckert

Colunista do UOL

09/05/2023 04h00

Antes de tudo, a coerência; ser coerente sempre, sempre.
André Rebouças

Lula havia perdido a mão em seus discursos. Em quase todas as apresentações, sem preparo adequado, dizia o que vinha na cabeça, e, em seguida, diante das repercussões negativas, precisava dizer que não havia dito o que efetivamente disse.

Depois de colocar o dedo na tomada e constatar que dava choque, parece ter se dado conta de que precisava ser mais cuidadoso. Descobriu que não falava mais apenas para o seu eleitorado, como se estivesse ainda em campanha, mas sim como o presidente de todos os brasileiros.

Ao que tudo indica, porém, ainda vai precisar de outras mudanças. Em seu pronunciamento no Conselhão, por exemplo, acertou na forma, mas pecou na prática do conteúdo.

Aula de técnica oratória

A fala de improviso é arriscada, pois o orador pode se perder na organização das ideias, divagar e, principalmente, dizer o que não devia. A leitura, por outro lado, quase sempre é cansativa, sem atrativo, desinteressante. Um bom recurso é usar o texto escrito como apoio e fazer comentários complementares sem olhar para o papel. Essa prática, porém, é difícil.

Lula conseguiu. Na cerimônia de lançamento do Conselhão, dia 4, o presidente voltou a falar como nos bons tempos em que magnetizava as plateias com a sua oratória. Fez um discurso híbrido. Leu a mensagem praticamente o tempo todo e, durante a apresentação, vez ou outra, deixou o papel para fazer comentários de improviso.

Não arriscou. Reservou os momentos improvisados para falar dos temas com os quais está bem familiarizado. Quando se referiu às desigualdades sociais, por exemplo, ousou pronunciar duas ou três informações sem a leitura, mas logo em seguida voltou ao papel para se certificar de que não estava deixando de lado nada importante.

A voz

Até a voz estava melhor, mais limpa, mais compreensível. Embora tenha usado sua conhecida veemência em várias etapas do discurso, na maior parte do tempo foi comedido, usando as pausas de forma competente. Escorregou em algumas palavras, mas nada que comprometesse a mensagem. Quando disse, por exemplo, "sajaio" em vez de salário.

Acertou também na expressão corporal. A postura foi correta, sem rigidez. Como falou atrás do pódio, não pôde se movimentar diante do público, como costuma agir, até, às vezes, de maneira bem exagerada. Os gestos foram moderados, apenas destacando uma ou outra informação relevante e complementando bem o que dizia.

O contato visual

Mesmo se valendo do papel para leitura na maior parte do tempo, teve o cuidado, sempre que podia, de olhar para todos os lados do auditório. É um comportamento que faz os ouvintes se sentirem prestigiados no ambiente, como se o orador estivesse mesmo conversando com eles. O semblante esteve arejado, quase forçando uma simpatia.

Perambulou por diversos assuntos, mas jamais deixou de voltar ao tema principal da sua mensagem. Todos os tópicos estavam perfeitamente contextualizados com o objetivo daquele encontro. Essa é a grande vantagem do discurso preparado, estudado, planejado. Evita que o pensamento voe e descole do que está sendo tratado.

Momentos de eloquência

Foi mais eloquente quando falou da época em que, pela primeira vez no Brasil, filho de empregada doméstica, filho de pedreiro, filho de lixeiro puderam ter uma vaga na universidade e se transformar em doutor. Aproveitou o gancho para ligar com a questão da desigualdade.

De maneira irônica, enfatizou que não existe nada mais belo que o capítulo da nossa Constituição que fala da questão social:

Parece que você está lendo a Constituição da Dinamarca, da Finlândia. Tal a beleza de conquista que o povo teve.

Fez, todavia, o contraponto, ao citar a desigualdade racial, de gênero, de oportunidades.

Incoerência

Ampliou sua análise ao citar outros exemplos de desigualdades, como a que está no salário, na qualidade do emprego, na qualidade da saúde, na qualidade da educação, na qualidade do dentista que você usa, na praia que você frequenta. Só poderia merecer aplauso.

Uma questão fundamental que norteia os bons princípios da oratória, entretanto, é a coerência. Lula fez essa pregação admirável com as palavras, mas três dias depois, em demonstração de gritante contradição, foi para Londres e em vez de se hospedar de graça nas instalações da embaixada brasileira, preferiu um hotel com diárias de cerca de R$ 40 mil. Mais ou menos assim - faça o que eu mando, mas não faça o que eu faço.

Citou os ouvintes

Permaneceu atento aos que estavam presentes. Por isso, vez ou outra, citou o nome de alguns, como o de Gabriel Chalita, Geraldo Alckmin. Aproveitou essas citações para mencionar dados relevantes, como, por exemplo, ao se referir a Nelson Jobim:

Hoje, meu caro Jobim. Se você entrar na USP, já vai ver metade dos estudantes de cor negra ou parda. Coisa que era impossível 20 anos atrás.

Bom humor

O que chamou mais a atenção foi sua descontração. É brincando que também se pode dizer a verdade. Lula explorou com habilidade a presença de espírito, ainda que tratasse de temas sérios. Em certo momento, criticou com alguma leveza o presidente do Banco Central.

Ao afirmar que a liberação de financiamento poderia ajudar as pessoas a realizar seus sonhos, pois, segundo ele, o cidadão não quer saber quanto vai pagar no total, mas sim se a prestação cabe no seu bolso. Nesse momento fez uma pausa e ressalvou sorrindo que isso não significava que concordava com Campos Neto.

Equívoco

Esse equívoco conceitual econômico é dos mais antigos que se conhece. Emprestar dinheiro para pessoas que sabidamente não poderão quitar suas dívidas, é fazer populismo no curto prazo e arruinar ainda mais a vida desses indivíduos no médio e longo prazo. Os dados estão aí para comprovar.

Durante o seu governo, Lula aumentou o crédito pessoal em mais de 300%. Em contrapartida a essa "alegria" momentânea, no último ano de gestão do petista, 25% desses tomadores de empréstimo se tornaram inadimplentes, e 59% endividados. Não deu certo naquela época, e, como já deveria ter servido para o aprendizado, não dará certo em tempo nenhum. O discurso é bonito, mas a prática é ruim e até perversa.

Até cantou

Sabendo que a plateia o aplaudiria, independentemente do conteúdo da mensagem, Lula se mostrou tão descontraído que em determinado instante até arriscou cantar um versinho: "Quem sabe, sabe, quem pode, pode". Estava irresistível na tribuna.

Usando aqui um trocadilho com o objetivo do evento, esse desempenho de Lula, melhorando muito a qualidade do seu discurso, só pode ter sido resultado de alguém, dotado de lucidez, que deu a ele um "conselhão".

Falta aprimorar

O presidente precisa agora de quem o alerte para o fato de que endividar a população jamais será uma boa política social. Deveria aproveitar sua extraordinária capacidade oratória para estabelecer políticas que garantam o desenvolvimento do país e o bem-estar das pessoas.

Ah, e parar com essa gastança e luxo desnecessários. Afinal, como ele próprio faz questão de apregoar, um televisor só é suficiente para uma família. Bem, um passo de cada vez.

Superdicas da semana
Alternar leitura com improviso é uma ótima técnica de discursar
Um recurso de apoio escrito permite que o orador não se perca
A fala bem-humorada, quando a circunstância permite, é mais cativante
Um conteúdo defeituoso pode ser atenuado pelo bom desempenho do orador
Um discurso só será bom se a conduta for exemplar

Livros de minha autoria que ajudam a refletir sobre esse tema: "Como Falar Corretamente e sem Inibições", "Comunicação a Distância", "Saiba Dizer Não", "Os Segredos da Boa Comunicação no Mundo Corporativo" e "Oratória para Advogados", publicados pela Editora Saraiva. "29 Minutos para Falar Bem em Público", publicado pela Editora Sextante. "Oratória para Líderes Religiosos", publicado pela Editora Planeta.