Lula seria reprovado em uma redação do Enem?
Que todos os homens são criados iguais; que são dotados pelo seu Criador de certos direitos inalienáveis; que entre esses direitos estão a vida, a liberdade e a procura da felicidade.
Jefferson
A reflexão que vou levantar é apenas uma pergunta retórica: Lula seria reprovado em uma redação do Enem? Não, a minha dúvida não se refere apenas à falta de domínio da modalidade escrita formal da língua portuguesa. Tampouco se o texto fugiria do tema determinado. Também não se restringe ao desconhecimento dos mecanismos linguísticos.
Por se tratar, aqui no nosso exemplo, de texto oral, discurso mencionado a seguir, ainda que uma ou outra competência pudesse ser considerada, não se enquadraria nas normas do Enem.
Proposta de intervenção
Sabemos, entretanto, que a última das cinco competências observadas pelos julgadores é: "Uma proposta de intervenção". Entre os aspectos analisados nessa sugestão está se os meios propostos respeitam os direitos humanos. Valeria, portanto, para quem fala ou escreve.
Houve época em que, se o candidato não respeitasse os direitos humanos, sua redação seria zerada. A partir da decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) em 2017, a penalidade foi amenizada. Se os direitos humanos não forem respeitados, a nota não será zero, mas perderá 200 pontos na avaliação. Ou seja, não será anulada mas, em certas circunstâncias, pode reprovar.
Direitos humanos
As Diretrizes Nacionais estabelecidas pelo Ministério da Educação, Conselho Nacional de Educação e Conselho Pleno para a Educação e Direitos Humanos na Resolução nº 1, de 30 de maio de 2012, determina as situações em que os direitos humanos são violados. Embora as informações sejam objetivas, pode haver, nas entrelinhas, certa subjetividade.
Basta mencionar alguns pontos da sua fundamentação para constatar que certos aspectos ficam por conta de interpretação: dignidade humana, igualdade de direitos, democracia na educação, sustentabilidade socioambiental. Dependendo do olhar do avaliador, determinadas informações poderão ou não afrontar, por exemplo, a dignidade humana.
Tem que ser extirpada
Por isso, a dúvida se Lula lograria sucesso em uma prova de redação do Enem deve levar em conta apenas a "proposta de intervenção" e o "respeito aos direitos humanos". Vamos imaginar que as declarações feitas pelo presidente na quarta-feira (19) ao comentar sobre o entrevero que envolveu o ministro Alexandre de Moraes, no Aeroporto Internacional de Roma, fossem sua "proposta de intervenção":
Um cidadão desses é um animal selvagem, não é um ser humano. Essa gente que renasceu no neofascismo colocado em prática no Brasil tem que ser extirpada, e nós vamos ser muito duros com essa gente para eles aprenderem a voltar a ser civilizados.
Um animal selvagem
Não cabe aqui discutir os detalhes do episódio, pois agora se ouvem versões controversas das duas partes. Também não se pode atribuir ao comentário de Lula motivação político-ideológica, já que Roberto Mantovani Filho, suspeito de ter hostilizado o ministro, foi parceiro dele quando se candidatou a prefeito em sua cidade. Há santinho com a foto dos dois.
O problema todo reside na afirmação de que "um cidadão desses é um animal selvagem" e de que "essa gente que renasceu no neofascismo colocado em prática no Brasil tem que ser extirpada". Essa recomendação do presidente poderia provocar dúvidas em um avaliador do Enem.
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Quero receberA interpretação do avaliador
Se ele julgasse a sugestão ao pé da letra, como a definição do termo "extirpar" esclarece (dicionário Houaiss), o risco de tirar 200 pontos de Sua Excelência seria considerável: Arrancar pela raiz. Operar a extirpação de (cisto, cancro, etc.). Promover a destruição ou eliminação. Extinguir, destruir. Abolir, suprimir.
Sem contar que comparar o homem a um animal selvagem poderia, em tese, desumanizar e afrontar a dignidade humana.
Com boa vontade, todavia, dependendo do avaliador, seria justo supor que se tratou apenas de uma expressão no sentido figurado. Portanto, nessa concepção, não deveria haver rebate na pontuação do texto.
Como não é conveniente arriscar, e ficar apenas na subjetiva interpretação de quem avalia, seria interessante, pelo menos para efeito de redação no Enem que "propostas de intervenção" como essa utilizada pelo presidente fossem descartadas. Ou para usar um termo próprio do seu discurso, extirpadas.
Superdicas da semana
- Todo cuidado é pouco quando há risco de interpretação da palavra ao pé da letra
- Se dependermos da avaliação de terceiros, temos de procurar evitar a subjetividade na interpretação de um texto
- As palavras, em si mesmas, sempre ficarão na dependência do sentido criado pelo interlocutor
- É mais conveniente ponderar as consequências antes de falar que tentar desdizer depois
O conteúdo desse tema é estudado no curso de pós-graduação em "Gestão de Comunicação e Marketing" que ministro na ECA-USP. Livros de minha autoria que abordam esses conceitos: "Superdicas para uma redação nota 1.000 no ENEM", "Como falar corretamente e sem inibições" e "Oratória para advogados", publicados pela Editora Saraiva. "Oratória para líderes religiosos", publicado pela Editora Planeta. "29 minutos para falar bem em público", publicado pela Editora Sextante.
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