IPCA
0,83 Mar.2024
Topo

Carlos Juliano Barros

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Olimpíadas: como nos encantamos com o esporte e imitamos isso no trabalho

 Em nenhum outro campo a combinação entre talento e esforço é tão bem resolvida como no esporte. - Reprodução
Em nenhum outro campo a combinação entre talento e esforço é tão bem resolvida como no esporte. Imagem: Reprodução

27/07/2021 04h00

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Atleta frustrado que sou, admito que é praticamente impossível manter a concentração no trabalho - ou em qualquer outra coisa - durante as Olimpíadas. Mas desconfio de que este seja um "problema" generalizado.

O esporte sequestra nossa atenção e nos encanta tanto por talvez ser a atividade humana que melhor concilie duas raras e cobiçadas qualidades: talento e esforço.

Por todo esse poder de sedução, não chega a ser surpresa que outras esferas da vida se pautem pelos valores do esporte. O combo talento/esforço é amplamente admirado e reproduzido no mundo do trabalho, por exemplo.

Mas falemos primeiro sobre o talento. A verdade é que não dá para ser um atleta de primeira linha sem um empurrãozinho da genética. Pense no shape de Michael Phelps, recordista absoluto das Olimpíadas. A lenda norteamericana jamais teria conquistado impressionantes 28 medalhas - 23 delas, de ouro - se seu corpo não tivesse sido perfeitamente talhado para a natação.

Porém, como sabemos, aptidão pode não ser o suficiente. A competição esportiva de alto nível é uma gangorra de equilíbrio fino. E é justamente aí que mora sua poesia. O atleta naturalmente superior, se não leva a coisa realmente a sério, é inevitavelmente atropelado pelo adversário aparentemente menos vocacionado, porém, mais esforçado.

Lembra do atacante Ronaldo, apelidado de Fenômeno, muito acima do peso na Copa do Mundo de 2006? Pois é...

Em nenhum outro campo a combinação entre talento e esforço é tão bem resolvida como no esporte. Dizer que Elis Regina é a maior voz brasileira de todos os tempos, ou que Marie Curie é a principal cientista da história, traz necessariamente um juízo de valor, uma impressão subjetiva que jamais poderá ser cabalmente comprovada, por falta de critérios adequados.

O mesmo não se pode dizer de Simone Biles. Que privilégio é poder assistir à maior ginasta de todos os tempos em ação. Ela é a melhor - e ponto final! - não só porque ganhou quatro medalhas de ouro em uma mesma olimpíada, na era mais competitiva do esporte. Mas porque é capaz de realizar acrobacias inimagináveis até mesmo por outras atletas espantosas, como Nadia Comaneci e Larisa Latynina.

Superação

O esporte também é cativante porque oferece critérios claros e objetivos - o maior número de pontos, o menor tempo possível - para definir quem triunfa ao final. Isso transmite uma reconfortante noção de justiça, o sentimento de que vence aquele que realmente merece.

Ao mesmo tempo, o esporte permite reviravoltas incríveis. Como não lamentar a quase impossível virada que a seleção brasileira de vôlei feminino tomou da Rússia nos jogos de Atenas, em 2004?

E quem não se orgulha da volta por cima daquela mesma geração de jogadoras brilhantes que faturou o ouro nas duas edições seguintes?

O fato é que o esporte vai muito além do lazer ou do lúdico. Hoje em dia, seu principal valor é aspiracional. Num mundo em que competimos o tempo todo por tudo, de vagas de emprego a curtidas nas redes sociais, a função do esporte é produzir a mística da superação. A receita do sucesso é combinar o talento e o esforço de um Lebron James da vida, super-herói nas arenas, nos negócios - e no cinema.

Trabalho: o esporte como referência

Não é por acaso, portanto, que tantos atletas e técnicos façam um bom dinheiro com palestras motivacionais sobre liderança - Bernardinho que o diga.

Ou que executivos de sucesso mantenham uma carreira esportiva amadora, porém, intensa. Tem de tudo: dos radicais, como Mark Zuckerberg no hydrofoil, aos tradicionais - caso do banqueiro João Amoedo, maratonista.

Também não é coincidência que expressões como "time", "meta" e "tomada de decisão" sejam tão populares no dialeto corporativo. O esporte é sempre a referência.

O porém é que o modelo de alta competição do esporte, ao mesmo tempo em que gera performances de beleza inigualável, pode provocar efeitos colaterais nada desprezíveis quando transplantados de parques olímpicos para escritórios e fábricas.

"Muitas empresas exigem o desempenho de um atleta de alto rendimento", afirma Renata Paparelli, professora do curso de Psicologia da PUC-SP e especialista em saúde do trabalhador. "E os atletas de alto rendimento, como eu costumo brincar, têm uma carreira curta, se aposentam por invalidez e depois se casam com seus fisioterapeutas porque têm sequelas desse processo de trabalho extremamente exaustivo", complementa.

É preciso admirar os grandes esportistas. Mas também é necessário entender que, na vida real, no dia a dia do trabalho, as pessoas não rendem como Michael Phelps ou Simone Biles. E está tudo bem. Ou, ao menos, deveria estar.