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Reportagem

'Brasil não é super-rígido na lei trabalhista', diz professor de Cambridge

O Brasil tem uma legislação trabalhista menos rígida que a de nações europeias e em linha com as sul-americanas. A China já não é um país de mão de obra barata há pelos menos duas décadas. Os Estados Unidos são menos protetivos em matéria trabalhista do que a média, porém, leis para regular demissões foram importantes no desenvolvimento tecnológico do Vale do Silício, meca da economia digital.

Essas são algumas das conclusões de um estudo que será publicado em breve pela OIT (Organização Internacional do Trabalho).

Coordenado por Simon Deakin, professor da Universidade de Cambridge, na Inglaterra, e um dos mais renomados especialistas do mundo na área, a pesquisa se baseia em um algoritmo codificado para analisar a evolução da legislação trabalhista em 117 países, nos últimos 50 anos. A base de dados cobre 95% do PIB global.

"Quando você torna a lei mais rigorosa, os trabalhadores ficam mais protegidos e mais dispostos a compartilhar conhecimento com a empresa, o que é necessário para a inovação", afirma Deakin, referindo-se ao caso concreto do Vale do Silício.

Em fevereiro, ele assinou uma carta de solidariedade à legislação trabalhista brasileira, quando o STF (Supremo Tribunal Federal) se preparava para julgar a existência de vínculo empregatício entre trabalhadores e plataformas digitais, como a Uber.

"Não há futuro para o direito do trabalho se um empregador puder simplesmente extinguir os direitos de uma pessoa, classificando-a como trabalhador autônomo", diz.

Confira a íntegra da entrevista abaixo, realizada por meio de videoconferência.

É possível dizer que as leis trabalhistas, em todo o mundo, estão se tornando mais protetivas ou menos protetivas ao longo desses 50 anos?

A conclusão é que elas têm gradualmente se fortalecido desde a década de 1970, a uma taxa mais ou menos constante, globalmente. Se olharmos para um país em particular, como o Brasil, vemos muitas oscilações. Mas, na média, há um aumento lento e constante.

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Houve períodos em que elas se enfraqueceram e países foram seriamente desregulamentados. O Reino Unido foi um exemplo, na década de 1980, mas houve uma recuperação nas décadas de 1990 e 2000. Os outros são Nova Zelândia, Ucrânia e Geórgia.

Nos países sul-americanos, as maiores quedas foram na década de 1970, quando havia governos militares. Mas não foi uma desregulamentação tipicamente neoliberal. Foram os militares reprimindo o direito de greve, esse tipo de coisa. E não foi uma mudança permanente. Quando a democracia voltou à América do Sul, as pontuações subiram novamente.

Existe um argumento comum de que os direitos trabalhistas aumentam os custos trabalhistas e prejudicam a criação de empregos. Como sua pesquisa lida com isso?

Cientificamente, não é possível afirmar que as leis trabalhistas sejam prejudiciais. Elas podem ser positivas para a produtividade, por exemplo, porque a tendência é que as empresas façam recrutamentos com mais cuidado e ofereçam treinamento a seus empregados.

Quando as leis são fortes, os trabalhadores são incentivados a procurar trabalho estável e a investir suas habilidades de forma que beneficie a empresa. Portanto, quando falamos de capital humano, a estabilidade no emprego cria incentivos para ambos os lados.

A "teoria dos jogos", frequentemente usada hoje em dia, pode explicar por que você precisa de leis. Se uma empresa até deseja oferecer empregos mais estáveis, mas se preocupa com a concorrência de outras empresas [que não garantem os mesmos direitos], isso pode gerar a chamada "corrida para o fundo do poço", o que não é benéfico para ninguém.

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Da mesma forma, os trabalhadores podem se retirar do mercado de trabalho se não puderem ter garantias de que serão tratados de forma justa. Então, você precisa de leis, de padrões publicamente estabelecidos, e não apenas de contratos firmados entre duas partes, para evitar uma corrida para o fundo do poço.

Existe um "nível ótimo" de proteção trabalhista? No Brasil, os críticos às leis trabalhistas dizem que elas são excessivamente protetivas.

Não há um "nível ótimo" porque isso difere para cada país. Mas, definitivamente, o Brasil não é um país de alta regulação, de acordo com nosso índice. Parece estar no nível normal ou médio para a América do Sul. E a América do Sul, em geral, tem leis trabalhistas mais fracas do que as da Europa Ocidental, embora provavelmente mais fortes do que as de outras regiões, como a África.

O Brasil tem suas particularidades e é difícil de codificar — a lei de demissão é bastante complexa, não é como no sistema europeu. Porém, não é o caso de dizer que o Brasil seja super rígido. Claro, isso não significa que os empregadores não digam que existam problemas. Mas isso também acontece em todos os países.

Outro argumento comum dos críticos da legislação trabalhista é de que os EUA, maior economia do mundo, são o país onde os direitos trabalhistas são menos rigorosos do que em outros países, como na Europa. Qual é sua avaliação?

É verdade que os EUA não têm leis de demissão como existem na Europa Ocidental. Os EUA realmente não têm no momento uma lei muito forte que regule a negociação coletiva ou o tempo de trabalho. Mas há muitas leis nos EUA. O que não codificamos em nosso índice, mas é relevante, é que os EUA têm algumas das leis mais fortes contra a discriminação, entre todos os países.

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Os EUA estão, definitivamente, na parte mais baixa de nosso índice [ou seja, está entre os com legislação mais fraca]. No entanto, novamente, o que não codificamos é [o impacto do] salário mínimo, e os EUA têm um mínimo bastante alto pelos padrões internacionais.

Os salários nos EUA são relativamente altos, então, as empresas têm muito incentivo para investir em equipamentos e em [treinamento de] capital humano. Na prática, há bastante estabilidade no emprego, mesmo que a lei não exija isso.

De tempos em tempos, ocorrem mudanças nas leis dos EUA. Na década de 1980, eles fortaleceram significativamente a lei federal nacional de demissão. Quando essa lei foi introduzida, sabemos por meio de vários estudos, incluindo o nosso, que houve uma melhoria na produtividade. Não apenas na produtividade, mas também na inovação.

Além dessa lei nacional, o que não codificamos, mas outras pessoas codificaram, são as leis estaduais. Há um estudo de uma equipe sediada na NYU (Universidade de Nova York, na sigla em inglês) sobre o que aconteceu na Califórnia, nos anos 1990 e 2000. Tornou-se mais difícil demitir, devido a decisões judiciais. Quando isso aconteceu, novamente, houve uma melhoria na produtividade, mas também na inovação.

A teoria é que, quando você torna a lei mais rigorosa, os trabalhadores ficam mais protegidos e mais dispostos a compartilhar conhecimento com a empresa, o que é necessário para a inovação. O número de startups no setor de alta tecnologia aumentou. O número de pessoas empregadas nessas empresas aumentou, e o número de patentes aumentou. Este não é um caso trivial — é o caso do Vale do Silício, presumivelmente.

E quanto à China e aos países da Ásia?

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O Leste Asiático — China, Taiwan, Coreia, Japão, Vietnã — é a região onde as leis trabalhistas estão mais claramente se fortalecendo nos últimos 20 anos. É também onde a formalidade do emprego está aumentando, e onde há uma melhoria na produtividade e inovação.

A China tem leis trabalhistas fortes desde a legislação de 2007, um código básico de trabalho. O Japão já tem leis bastante rigorosas, e recentemente as fortaleceu novamente para os chamados contratos atípicos de meio período e temporários. A Coreia tem leis trabalhistas fortes desde os anos 1990. Taiwan, semelhante.

O que você vê na China é que, recentemente, as empresas que se mudaram para Indonésia e Vietnã estão voltando para a China, porque a qualidade da mão de obra é maior, a produtividade é maior e a infraestrutura é muito melhor. Na China e no Japão, não é apenas a lei trabalhista, mas é o investimento em infraestrutura pública que também cria alta produtividade.

Portanto, a China não é um caso de mão de obra barata, de forma alguma. Pode ter sido há 20 anos, mas não é mais há bastante tempo. O Leste Asiático já não é mais uma área de baixo custo e baixa regulação.

Em fevereiro, o senhor e mais 600 especialistas do mundo todo assinaram um manifesto de solidariedade à legislação trabalhista brasileira, quando o STF (Supremo Tribunal Federal) se preparava para julgar a existência de vínculo empregatício entre trabalhadores e plataformas digitais, como a Uber. A tese do manifesto é a de que a corte pode tornar a legislação trabalhista "facultativa" e esvaziar a competência da Justiça do Trabalho para analisar esses tipos de relações de trabalho. Por que o manifesto é importante?

Não há futuro para o direito do trabalho se um empregador puder simplesmente extinguir os direitos de uma pessoa, classificando-a como trabalhador autônomo.

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Portanto, o motivo pelo qual muitos advogados trabalhistas ao redor do mundo assinaram o manifesto foi porque eles têm, como especialistas nesse campo, algo a dizer: "Vocês estão dispostos a desmantelar seu sistema de proteção ao trabalho, seguindo este caminho?" Porque esse vai ser o efeito.

O importante é entender que o direito do trabalho não é uma espécie de relíquia ultrapassada da era industrial, mas é absolutamente necessário hoje, não apenas pelo que tradicionalmente fornecia. O direito do trabalho é realmente importante para uma economia sustentável. Ao dizer "sustentável", eu me refiro a uma economia que possa garantir o bem-estar humano e o progresso econômico.

É claro que não cabe a mim dizer aos legisladores ou juízes brasileiros como fazer sua legislação trabalhista. Isso é para as pessoas no Brasil decidirem. Como pesquisador, o melhor que posso dizer é que, se você fragmentar seu sistema de direito do trabalho dessa maneira, certas coisas acontecerão.

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Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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