Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Já passou da hora de aplicativos assumirem compromisso por trabalho decente
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É sempre um alívio ver empresas que geram grandes impactos sendo cobradas pela chamada "sociedade civil organizada". Até porque o Estado nem sempre tem força para garantir que o setor privado ande na linha. Quando as autoridades varrem a poeira para baixo do tapete, então, a mobilização do público se torna ainda mais urgente.
Na semana passada, veio à tona um importante relatório sobre as ações adotadas pelas principais plataformas do país - Getninjas, iFood, Rappi, Uber e 99 - para promover o trabalho decente.
Elaborada pela Fairwork, rede de pesquisadores vinculada à Universidade de Oxford e presente em 27 países com o objetivo de estabelecer padrões trabalhistas mínimos para a economia digital, a análise mostrou que os aplicativos ainda deixam - e muito - a desejar.
Livre e espontânea pressão
É ponto pacífico que a fauna cada vez mais diversa de apps precisa de regulação. Em alguns casos, como nos ramos de delivery e de transporte, a Justiça debate há anos a existência de vínculo empregatício entre plataformas e trabalhadores.
Mas, enquanto as cortes não batem o martelo e o Congresso Nacional não aprova um marco regulatório capaz de colocar ordem na casa, como fica a situação das milhões de pessoas que trabalham por meio de aplicativos?
A recente debandada de motoristas do Uber, motivada pela queda vertiginosa de renda e pela falta de garantias mínimas, é um ótimo termômetro sobre a premência do tema. E isso não atinge apenas quem ganha a vida em plataformas - os consumidores também são profundamente afetados.
É aí que entra a pressão da sociedade civil organizada. Por sinal, o Brasil tem uma vasta experiência em articulações para colocar em prática ações de impacto socioambiental.
A Moratória da Soja convenceu as principais processadoras de grãos do país a não comprar mais matéria-prima de fazendas com áreas devastadas ilegalmente para plantio, a partir de julho de 2008. Nem de longe resolveu o problema, mas ajudou a conter o desmatamento de biomas ameaçados, como a Amazônia e o Cerrado.
Três anos antes, uma parcela expressiva do PIB brasileiro já havia assinado o Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo - um compromisso para limar das cadeias produtivas os fornecedores autuados por explorar pessoas sujeitas a violência, dívidas fraudulentas e condições degradantes.
Ou seja, muito antes de o conceito de ESG virar febre no mundo corporativo com seus princípios sobre sustentabilidade, empresas de setores com potencial para geração de graves danos socioambientais - como mineração e agronegócio - já vinham passando por um intenso escrutínio público.
Agora chegou a vez da economia digital. Se pensarmos na centralidade que essas plataformas vêm assumindo em nosso dia a dia, fenômeno intensificado com a pandemia do covid-19, não há mais tempo para deixar uma série de perguntas sem respostas.
As pessoas vão continuar recebendo valores que muitas vezes não cobrem seus gastos? Desligamentos arbitrários, que tiram a renda dos trabalhadores do dia para a noite, vão seguir ocorrendo? Quando precisarem de suporte das plataformas, eles vão dialogar com robôs que não resolvem seus problemas? Em caso de acidente, quem paga a conta?
Fairwashing
Na medida em que as cobranças por melhores práticas trabalhistas se intensificam, é de se esperar também que as plataformas apostem em jogadas de marketing para vender uma imagem de "justiça" e desviar a atenção do que realmente importa - o chamado "fairwashing".
É algo similar ao que, no jargão dos ambientalistas, ficou conhecido como "greenwashing": aquela estratégia de anunciar que recicla o papel da impressora enquanto segue fazendo negócio com quem derruba a floresta ou polui os rios.
"Quando a plataforma fala para a gente: 'olha, eu fiz uma campanha no dia internacional da mulher e lá a gente fala que apoia a diversidade', a gente responde: isso não é política institucional, isso é publicidade", exemplifica Claudia Rebechi, professora da Universidade Tecnológica Federal do Paraná e pesquisadora da rede Fairwork no Brasil.
Diante da crescente pressão da mídia, dos trabalhadores e de articulações como o Fairwork, é mais do que provável que, muito em breve, as plataformas contratem consultorias ou anunciem a adesão a pactos empresariais de boas práticas para melhorar sua imagem.
Isso não é necessariamente ruim. Mas, além de diferenciar o fairwashing do compromisso real com melhorias, é preciso ter em mente que apenas uma regulamentação estatal amplamente debatida vai consertar a terra sem lei em que se transformou a economia digital brasileira.
Para os casos em que o vínculo é evidente, que se reconheça a relação de emprego. Para as outras modalidades não cobertas pela atual legislação, que se construa um marco de proteção real aos trabalhadores - e que punições sejam aplicadas, em caso de não cumprimento das regras.
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