Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
A esquerda 'identitária' é necessariamente de esquerda?
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Algumas pessoas têm o dom de enxergar à frente de seu tempo. A filósofa norte-americana Nancy Fraser certamente é uma delas.
Poucos anos após a queda do Muro de Berlim, a dissolução da União Soviética e o colapso do "socialismo real", Fraser já era capaz de farejar uma transformação incipiente que hoje, três décadas depois, é um fato consumado.
Em "Justiça Interrompida", publicado originalmente em 1997 e oportunamente relançado neste ano pela editora Boitempo, a autora investiga uma mudança no foco nas preocupações das pessoas que se identificam com a esquerda.
Já na virada do século, a redistribuição da riqueza, em nome de uma ampla justiça social, começava a perder terreno para o reconhecimento das necessidades particulares de grupos historicamente desprestigiados, como negros, mulheres e LGBTQIA+.
Essa é a origem do que atualmente se denomina "esquerda identitária", um conceito especialmente polêmico nestes tempos de lacrações de redes sociais.
O princípio da redistribuição da riqueza sempre foi definidor da esquerda. Até porque, para a direita, o abismo de renda entre as pessoas não é propriamente um problema —ao contrário, pode ser a fonte do progresso que vai recompensar os mais capazes de produzir as inovações que supostamente vão beneficiar toda a sociedade.
Esse argumento veio à tona na semana passada, quando o empresário bolsonarista Winston Ling afirmou em seus perfis que "precisamos de mais desigualdade, não menos".
Mas voltemos ao livro de Fraser. Logo de cara, ela ressalta que a redistribuição não é incompatível com o reconhecimento. Até porque a desigualdade econômica é agravada pelo racismo, pelo machismo e pela homofobia. Sabemos como isso impacta na dinâmica salarial e na ocupação de cargos de liderança no mercado de trabalho.
É bem verdade que, ao longo de décadas, a própria esquerda privilegiou a redistribuição da riqueza e negligenciou o reconhecimento das necessidades de grupos estigmatizados. A obra da pensadora feminista italiana Silvia Federici, por exemplo, demonstra como o trabalho doméstico não remunerado das mulheres passou bem longe das preocupações de revoluções feitas em nome da igualdade social.
Só que agora parece ocorrer o contrário: é o princípio do reconhecimento que vem ofuscando um projeto mais amplo de redistribuição. O que Fraser, 25 anos atrás, vislumbrava como possibilidade, hoje se revela uma realidade.
E a verdade é que as pautas identitárias não são necessariamente bandeiras de esquerda. Estão aí os programas de diversidade tocados por algumas das maiores empresas do mundo que não nos deixam mentir. É o caso dos Gayglers, como são conhecidos os coletivos LGBTQIA+ de funcionários do Google.
Em outras palavras, ainda que estejamos a anos-luz de fazer com que homens brancos heterossexuais deixem de ter privilégios, é inegável que uma mudança de mentalidade, que preza pelo respeito às diferenças, vem se consolidando —principalmente, nos círculos mais avançados do capitalismo.
E isso acontece mesmo que os críticos vejam esse processo mais como uma jogada de marketing de empresas interessadas em vender uma boa imagem do que como um compromisso verdadeiro de transformação social.
É necessário repetir a consideração de Fraser: redistribuição e reconhecimento não são princípios que se excluem. Só que enquanto o primeiro é definitivamente de esquerda, o segundo não é —necessariamente.
É possível e desejável que se enfrentem, ao mesmo tempo, os problemas da injustiça de classe e as violações de direitos decorrentes de diferenças de cor e gênero. Mas também é fato que há décadas o campo da esquerda enfrenta uma crise de imaginação e uma dificuldade de apresentar propostas para realizar aquilo que deveria ser o seu objetivo final: a divisão igualitária da riqueza.
Talvez seja essa, inclusive, uma das explicações para o crescimento da extrema-direita em todo o mundo. Mas isso é tema para uma próxima coluna.
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