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Reportagem

Benefício para o topo da pirâmide não é tido como gasto, critica economista

Tema central da agenda política e econômica do fim do ano, o pacote de ajuste fiscal anunciado pelo governo federal se trata, na realidade, de uma discussão sobre o papel do Estado e sobre o pacto social firmado na Constituição de 1988.

Essa é a avaliação de Luiza Nassif Pires, professora do Instituto de Economia da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e co-diretora do Made/USP (Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo).

"Eu vejo muito os analistas de mercado pautando a necessidade de corte de gastos, que são exatamente gastos necessários para redução da desigualdade no país, enquanto há outros que poderiam ser cortados e que não aumentariam a desigualdade", diz.

Ela cita a isenção de tributos sobre lucros e dividendos e as deduções de despesas com saúde privada como exemplos de medidas que não são enxergadas como "gastos", mas que impactam negativamente as contas públicas — e beneficiam apenas o topo da pirâmide.

"O fiscal não responde às ânsias do mercado, necessariamente. O fiscal responde à garantia de direitos", afirma a pesquisadora.

Confira abaixo a íntegra da entrevista.

O governo reconhece a necessidade de promover um ajuste fiscal, mas boa parte desse ajuste passa pela contenção de gastos sociais, principalmente da Previdência. Como isso pode impactar a desigualdade?

O governo está reconhecendo uma necessidade de cortar, mas é um corte de gasto que vem de uma necessidade que também foi imposta pelo mercado — e uma resposta dada a esses mesmos grupos pelo arcabouço fiscal.

Ela foi selada ali no momento que foi criado o novo arcabouço fiscal, que criou uma regra que, para realmente ser cumprida, ia demandar certas mudanças. Tanto do ponto de vista do gasto, quanto do ponto de vista da arrecadação.

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Também havia ali naquele momento uma promessa de que se aumentaria a arrecadação. Isso a gente não viu ainda. A reforma tributária [sobre o consumo] que passou foi uma reforma neutra, do ponto de vista da arrecadação.

O que está sendo proposto agora [tributação mínima para quem ganha acima de R$ 50 mil mensais] é um aumento no topo, mas que está sendo compensado com uma redução na base [isenção para quem ganha até R$ 5 mil mensais]. Então, do ponto de vista da arrecadação, o que está no pacote [sobre a renda] também é neutro.

Eu vejo muito os analistas de mercado pautando a necessidade de corte de gastos, que são exatamente gastos necessários para redução da desigualdade no país, enquanto há outros que poderiam ser cortados e que não aumentariam a desigualdade. Por exemplo: a isenção de [tributos sobre] lucros e dividendos.

Em geral, os economistas do mercado dizem que o governo precisa "cortar na carne", e não aumentar a arrecadação. Como você avalia esse argumento?

Isso demanda um estudo um pouco mais cuidadoso das contas do governo para entender onde tem espaço e onde não tem espaço [para realizar cortes].

O fiscal não responde às ânsias do mercado, necessariamente. O fiscal responde à garantia de direitos. Tem um pacto social que foi feito em 1988 e que definiu o tamanho do Estado e o quanto o Estado precisa gastar.

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Então, na verdade, o que está sendo discutido de uma forma velada é o papel do Estado, é que tipo de Estado nós queremos ter. E existe uma pressão para que o Estado seja um Estado reduzido, seja um Estado menor. E aí você vai cortando a partir desse tipo de discurso aquilo que é essencial para a garantia de direitos.

É preciso uma rediscussão do papel do Estado para entender como bancar esses direitos previstos na Constituição?

Isso. E acho que perpassa rediscutir o papel da tributação também. Você não consegue ter essa discussão só focando no gasto, você precisa pensar na tributação.

E tem uma coisa que a gente chama de "gasto tributário", que não é tratado como gasto, normalmente, pelos analistas de mercado. Por exemplo: a isenção que você recebe se você tem algum gasto com saúde privada. Isso é uma arrecadação que o governo deixa de ter e que é entendido como um gasto também.

Então, esses tipos de gastos, de isenções, de deduções e afins, não estão sendo rediscutidos. E eles não são vistos como gastos [pelos analistas de mercado], por algum motivo. E poderiam estar sendo discutidos, porque esses, sim, são extremamente concentradores de renda. São benefícios para o topo da pirâmide.

O governo deve encaminhar em breve a segunda fase da reforma tributária, que vai abordar a questão da renda, no sentido de criar um sistema mais progressivo, que cobre mais dos mais ricos. Essa discussão poderia ter sido mais amadurecida?

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Essa discussão vem sendo desenvolvida há um tempo. No próprio âmbito do G20, por exemplo, o Brasil pautou muito a discussão da tributação de grandes fortunas. Isso já é uma agenda pessoal do ministro da Fazenda há um tempo.

O Brasil tem no imposto de renda em si uma regressividade. O pessoal do 1% do topo paga menos impostos que os 9% anteriores.

O que está sendo proposto não é nem suficiente para garantir a progressividade do 1% do topo. Porque os 9% anteriores pagam em alíquota efetiva, pelas nossas contas, 12,5%. O que está sendo proposto é que a alíquota efetiva do topo seja de 10%.

Então, é muito suave o que está sendo proposto. Agora, realmente, para você fazer uma taxação de grandes fortunas de amplo alcance, é importante você ter algum tipo de coordenação internacional, que é o que o Haddad também tentou durante o âmbito do G20.

Essa pauta foi muito levada à frente, exatamente para você tentar ter uma coordenação global para não ter esse problema de fugas de capital.

Reportagem

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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