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José Paulo Kupfer

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Não há descontrole da inflação, mas discurso triunfante de Guedes é bravata

O ministro da Economia, Paulo Guedes - Edu Andrade/Ministério da Economia
O ministro da Economia, Paulo Guedes Imagem: Edu Andrade/Ministério da Economia

24/08/2021 15h55

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"O Brasil vai surpreender o mundo" é uma afirmação recorrente do ministro da Economia, Paulo Guedes. Manobrar com números e palavras, é uma das suas principais especialidades.

Em mais uma das incontáveis "lives" do ministro com empresários, nesta segunda-feira (23), Guedes negou descontrole nas altas da inflação e afirmou que a taxa prevista, de 7% ou 8%, é semelhante à variação esperada do índice nos Estados Unidos. "Estamos dentro do jogo", concluiu.

A afirmação obedece à estrutura lógica típica das manipulações pelas quais Guedes já é bem conhecido. Uma parte é verdadeira, mas a outra é, evidentemente, sem sentido. A exemplo de um mágico de circo mambembe, o ministro não consegue esconder como executa o truque, expondo-se ao sorriso da plateia.

Com a inflação podendo chegar em agosto nas vizinhanças de 10%, no acumulado em 12 meses, alguém menos avisado ou sem experiência no acompanhamento da marcha dos índices, poderia imaginar a ação de uma espiral inflacionária na elevação dos preços. Combustíveis, energia, alimentos, itens de grande peso nos orçamentos domésticos, estão subindo.

Há alta de preços, sim, mas ainda nada que indique "descontrole". Nas previsões dos especialistas em acompanhamento de inflação, é provável que agosto marque o pico de 2021. Suas planilhas de acompanhamento dos índices de preços apontam refluxo daqui até pelo menos fins de 2022.

De setembro para frente, nas projeções de experientes observadores da inflação, a variação do IPCA (Índice de Preços ao Consumidor Amplo), índice que baliza o regime de metas de inflação, recua, mês a mês, fechando 2021 entre 7,5% e 8%. A descida prossegue em 2022, com a inflação encerrando em 4%.

Se Guedes tem razão em negar descontrole na inflação, não tem qualquer sentido sua tentativa de comparar níveis de inflação de países com estruturas econômicas distintas, e com políticas econômicas também distintas. Não é porque a inflação nos Estados Unidos - e em outras economias - está elevada e também acima das metas locais que a alta de preços no Brasil também teria de estar.

Existem, é fato, elementos comuns pressionando os preços num grupo amplo de países. Os choques de oferta causados pela pandemia e suas consequências, como a escassez de suprimentos eletrônicos, que promovem contrações no ritmo de produção, estão presentes em várias partes do mundo.

Mas não se pode generalizar, por exemplo, a alta de preços em alimentos. Países com melhor controle do que o Brasil em suas condições econômicas, providenciaram estoque reguladores, impedindo ou dificultando exportações irrestritas de grãos e carnes. Não foi esse o caso do Brasil, com lamentável reflexo negativo nos preços dos alimentos e nos índices de inflação.

São também diferentes entre países os perfis das matrizes energéticas, e a influência de crises climáticas, nas tarifas de energia. No Brasil, uma crise hídrica grave, a princípio tratada com negacionismo e desorganização, está no centro das pressões inflacionárias domésticas, em razão, entre outros motivos, da base hidrelétrica da matriz energética.

Há, claro, outras diferenças. Uma das mais relevantes reside na evolução do mercado de trabalho. Enquanto o desemprego, no Brasil, resiste nas alturas de 15% da força de trabalho, refreando pressões de demanda, nos Estados Unidos, a taxa desabou de 14% há um ano para menos de 6% agora.

Parte da explicação para o fenômeno, nos Estados Unidos, decorre do esforço fiscal para sustentar e reerguer a economia dos efeitos contracionistas da pandemia. Aqui, embora também tenha havido forte incremento nos gastos públicos em 2020, houve erro de avaliação do governo em relação à duração e aos efeitos da crise sanitária, com tentativas precoces de conter despesas, em 2021.

A avaliação do Ministério da Economia de que não haveria segunda onda de covid-19 neste ano, é só um evento de destaque na lista que permite concluir que a gestão Guedes tem sido incompetente e negligente. O nó na política econômica causado pelo "meteoro" dos precatórios, cujo salto no volume a ser quitado em 2022, de R$ 55 bilhões para R$ 90 bilhões, "surpreendeu" o ministro e seus técnicos, é prova definitiva dessa incompetência e da negligência no acompanhamento dos potenciais problemas da economia.

Guedes não acompanhou a evolução desses números, apesar de dispor dos instrumentos e das informações para tanto. Agora se vê diante da necessidade de recorrer a calote e pedaladas fiscais para retirar parte da conta dos precatórios do ano que vem dos controles fiscais.

Não deixa de ser impressionante que Guedes esteja insistindo em dourar a pílula, acenando com um déficit primário muito baixo em 2022, mesmo depois dos estragos na confiança de empresários e agentes do mercado financeiro, causados pelas tentativas de driblar as regras fiscais.

Ao anunciar, também nesta segunda-feira, que a economia "estava decolando" e projetar que o "Brasil poderá crescer, em 2022, em patamares semelhantes ao deste ano, Guedes voltou a sacar coelhos de uma cartola furada. Não satisfeito, ainda engatou a descrição de um horizonte fiscal ultraotimista para 2022.

O ministro mencionou a redução do déficit primário de 10,5% do PIB, em 2020, para 1,7% do PIB, em 2021, e 0,3% do PIB, em 2022. "Então, praticamente acabou o déficit", disse Guedes. "O Brasil enfrentou a maior depressão dos tempos modernos e está voltando a crescer rápido".

É hoje uma quase unanimidade que o crescimento de 2021, projetado em torno de 5%, e já agora com ligeiro viés de baixa, expressa apenas uma recuperação cíclica. Recuperação cíclica é aquela que se dá com taxas altas, mas por efeito estatísticos, por tomar para comparação uma base deprimida.

Avolumam-se projeções de que, em 2022, a expansão da atividade ficará longe dos níveis de 2021, situando-se abaixo de 2%. Um dos fatores que ajuda a projetar números mais modestos para a atividade econômica no ano que vem é a alta forte das taxas básicas de juros, já em execução pelo Banco Central, com o objetivo de conter a inflação - e, no pacote, as cotações do dólar, elemento de pressão inflacionária.

De tanto recorrer a truques retóricos, o discurso de Guedes tem se arriscado a cada vez mais a ser tomado como delírio - ou, no mínimo, manipulador. Em meio ao risco fiscal deflagrado pelo episódio dos precatórios, a venda de um aparente controle das contas públicas, expresso por acentuada redução no déficit primário projetado para 2022, mereceu imediatas ressalvas entre especialistas.

A redução prevista do déficit não se deve, principalmente, a algum trabalho bem planejado e executado de redução das despesas públicas, mas ao aumento da arrecadação. Enquanto as despesas nominais previstas para 2022 se mantêm praticamente estáveis, em relação ao estimado para 2021, nas projeções dos analistas, o serviço de conter o déficit será feito pelas receitas. Receitas crescem porque a economia cresce, como insinua Guedes? Não, respondem os especialistas.

Receitas estão crescendo e vão crescer, entre outras razões, porque uma parte foi postergada de 2020. Mas, antes de tudo, porque a inflação subiu e a arrecadação sobe quando os preços elevam faturamentos e rendas nominais. Além disso, é padrão ocorrerem aumentos mais fortes na arrecadação tributária depois de recessões, em especial quando a contração da economia foi pesada, como em 2020.

Não se pode, porém, esquecer que a mesma inflação, ao impulsionar a arrecadação, também afeta, mas aí negativamente, pela alta dos juros, a dívida pública, fazendo subir as despesas públicas em seu conjunto. Nestas circunstâncias, déficit primário menor não deveria levar à conclusão de que "o Brasil vai surpreender o mundo".

A elevação, de uns tempos para cá, das taxas futuras de juros e dos indicadores de risco-país mostram que o discurso triunfante e as bravatas de Guedes têm perdido credibilidade, inclusive na base de apoiadores. O rompimento da marca de dois dígitos nas taxas futuras de juros e a alta de 30 pontos no risco-país, de julho para cá, não deixam dúvidas do aumento das desconfianças na condução da economia.

É verdade que as turbulências políticas, permanentemente alimentadas pelo presidente Jair Bolsonaro, dificultam a gestão econômica e o controle da economia. Mas não conseguem esconder, nem podem ser tidas como a única desculpa, para as incompetências e negligências de Guedes e de seus subordinados, refletidas no retrocesso registrado em grande número de indicadores econômicos, sociais e ambientais, nestes 32 meses de governo.