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José Paulo Kupfer

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

FGTS liberado para endividados é como vender o almoço para pagar o jantar

24/02/2022 04h00

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A economia está sem força, fazendo água e ameaçando andar para trás? O governo Bolsonaro, sob a inspiração do ministro Paulo Guedes e de sua equipe, tem uma solução, pelo menos parcial, para o problema: liberar saques do FGTS (Fundo de Garantia do Tempo de Serviço).

Foi assim em 2019, quando várias novas modalidades de saque foram autorizadas, inclusive o ?saque aniversário?, que permite retirar dinheiro da conta anualmente, mas que impede o optante a sacar todo o saldo na demissão sem justa causa. Novas liberações foram determinadas em 2020, desta vez para compor, justificadamente, os programas de enfrentamento dos impactos da grande crise sanitária, social e econômica da pandemia de covid-19.

Com as projeções de dificuldades para o crescimento da economia também em 2022, tudo indica que a saída da liberação de saques do FGTS será mais uma vez acionada. Cálculos estão avançados no governo e a expectativa é a de que uma MP (medida provisória) seja editada até meados de março para oficializar a autorização dos saques nas contas do Fundo.

Estima-se, na equipe econômica, que 40 milhões de trabalhadores disponham de saldos em suas contas do FGTS. Se o valor autorizado para saque ficar em torno de R$ 1 mil por trabalhador, a injeção potencial de recursos na economia é calculada na equipe do governo em até R$ 30 bilhões. Seria pouco menos de 0,5% do PIB e equivaleria a um reforço de um terço nos R$ 90 bilhões que devem ser gastos com o Auxílio Brasil.

É mais provável que, se saques forem mesmo autorizados, eles não tenham destinação específica, ficando livres para o uso que seu detentor quiser dar ao dinheiro. Mas, ao defender a nova liberação do FGTS, Guedes recorreu ao argumento de que não fazia sentido o trabalhador endividado não poder sacar seu Fundo para quitar a dívida. O ministro, em princípio, gostaria de liberar o FGTS para o pagamento de dívidas.

Para Guedes, ao pagar a dívida ou parte dela, o dono da conta no FGTS, já às voltas com a inflação pesando no bolso, teria um alívio em seu orçamento doméstico. Mas, usar a poupança acumulada no Fundo para pagamento de dívidas difusas, por exemplo, como as do cartão de crédito, mesmo que o FGTS ofereça rendimento muito baixo aos trabalhadores cotistas, o risco de vender o almoço para pagar o jantar.

Quem garante que o espaço orçamentário decorrente da aplicação do saldo ou de parte dele na quitação de dívidas não vai estimular a contratação de novas dívidas? De outro lado, dispor de um saldo mais encorpado em momentos de grandes dificuldades - a demissão do emprego ou os gastos com uma doença grave -, bem como para compra ou quitação da casa própria é condição favorável nem um pouco desprezível.

Pode, é claro, haver situações em que o dinheiro sacado do FGTS opere como uma espécie de salvação da lavoura e a ampliação das possibilidades de saque possam vir na hora certa. Mas, de um modo geral, beneficiados mesmos seriam as instituições financeiras que fizeram o financiamento. Escapariam, sem custo, do fantasma da inadimplência, podendo reduzir as provisões para devedores, que acabam encolhendo as margens de lucro.

Pesquisa mensal da CNC (Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo) mostra que em janeiro deste ano, 73,1% das famílias, ou seja, três em cada cinco mantinham algum tipo de dívida. As altas de juros têm desestimulado a contratação de crédito e, por isso, o percentual de famílias endividadas no mês passado está ligeiramente menor do que em dezembro de 2021, recorde da série iniciada em 2010.

Do total de famílias endividadas, quase 90% delas têm dívidas com cartões de crédito. Pouco mais de 20% das famílias também têm dívidas com carnês, cheque especial, crédito pessoal e consignado, financiamento de carros e de casas.

Mas, de acordo com levantamentos da CNC, o comprometimento da renda com dívidas, em média, permanece no nível aceitável de 30%. Já a inadimplência se mantém na altura dos 25% - um em cada quatro devedores está em atraso -, apenas cerca de 1 ponto percentual acima do nível de inadimplência de 2019, mas com juros mais elevados, tende a aumentar.

O risco do usar saldos do FGTS para a quitação de dívidas reside, principalmente, na falta de planejamento para o futuro e na ausência da promoção de mudanças de comportamento. Quitar uma dívida hoje sem rever o orçamento familiar e reorganizar gastos é convite para novas dívidas amanhã. Pior ainda é a hipótese de sacar os recurso do Fundo para fazer frente a despesas correntes do dia a dia. No mês seguinte as necessidades de gastos estarão de volta, mas a poupança para fazer frente a eles já foi consumida.

Além dos riscos para os cotistas, a liberação dos saques sem planejamento cuidadoso tendem a pôr em perigo a sustentabilidade do FGTS. Seus recursos, que hoje somam cerca de R$ 600 bilhões, não cobrem apenas os saques regulares, sobretudo os de trabalhadores demitidos sem justa causa, que respondem por 60% das retiradas. Também são destinados a dar lastro e financiar programas de habitação, sobretudo para faixas populares, saneamento e infraestrutura urbana. Além dos benefícios diretos que tais obras propiciam, o outro lado desses programas se traduz por aumento do emprego e da renda na economia.