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José Paulo Kupfer

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Vale-tudo eleitoral cria ambiente de balbúrdia econômica e limita caça-voto

05/07/2022 16h44

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Será surpresa se a "PEC do Desespero" não for aprovada a toque de caixa, na Câmara dos Deputados. Tão importante quanto furar as regras fiscais e driblar as leis eleitorais, base da emenda constitucional que passou em tempo relâmpago no Senado, é permitir ao governo Bolsonaro distribuir dinheiro público a famílias na pobreza e outros grupos em tempo de obter com isso ganho eleitorais.

Correr contra o tempo é chave na emenda constitucional caça-votos, e o negócio é chegar logo aos beneficiados, na esperança de que o dinheiro que vai cair no cartão de benefício se transforme em voto na urna eletrônica. Na manhã desta terça-feira (5), a expectativa era a de que o texto seja votado e aprovado, nos devidos dois turnos, já na quarta-feira (6).

Havia dúvidas se o relator da proposta na Câmara, deputado Danilo Fortes (União Brasil-CE) faria alterações no texto que veio do Senado. Fortes está anunciando mudanças — quer tirar o "estado de emergência" e incluir os motoristas de aplicativos nos beneficiários. No fim da tarde desta terça-feira, depois de reunião com o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), decidiu pelo menos sujeito a atropelos: manter o texto que veio do Senado.

Alterações do texto do Senado na Câmara, pelas regras regimentais, obrigariam o retorno da PEC ao Senado, para nova votação em dois turnos. Mas, ainda que alterações sejam feitas, uma coleção de dribles em regras regimentais está sendo providenciada para manter a rapidez na tramitação, votação e aprovação. Está valendo tudo para tentar reverter uns pontos nas pesquisas de opinião, e, de quebra, avançar uns décimos de percentagem no crescimento da economia em 2022.

Não é mais, por exemplo, a "PEC do Desespero" que vai à votação. No Senado, a PEC 16/22 foi "apensada" — ou seja, anexada — à PEC 1/22, que prevê as transferências turbinadas de renda a famílias pobres, aumento do vale-gás, auxílio caminhoneiro, subsídios a transporte público para idosos. A 16/22 tratava das compensações aos estados pela União das perdas de arrecadação decorrentes da redução de alíquotas do ICMS.

A manobra de apensar a 16/22 pela 1/22, não só a desfigurou completamente, eliminando a compensação prevista aos estados, como permitiu acelerar sua tramitação. O texto pegou carona no que a tramitação da PEC 1/22 já tinha avançado e não precisou passar por comissões e audiências, tendo sido aprovada nos dois turnos regimentais em poucos minutos, na quinta-feira (30).

Na Câmara, o roteiro dificilmente não será o mesmo. A PEC 1/22 foi apensada pela PEC 15/22, conhecida como a dos biocombustíveis, cuja tramitação já está avançada. A proposta prevê ajuste na cobrança de tributos sobre combustíveis não fósseis, como o etanol, para mantê-los competitivo em relação aos combustíveis fósseis.

Assim, depois da sucessão de golpes legislativos, a PEC 16/22 do Senado deu uma volta ao mundo, terminando na aprovação como PEC 15/22 da Câmara. Ao pegar carona na PEC dos Biocombustíveis, na Câmara, a PEC do Desespero queima etapas no ritmo legislativo, já estando em condições de ser levada a plenário para votação.

Mais golpes e manobras estavam na linha de montagem da Câmara. No caso, para incluir novos beneficiários no trem da alegria das transferências de renda — agora os motoristas de aplicativos. Estimativas do próprio relator indicam que, com o novo apêndice de benefícios, os custos adicionais totais da PEC caça-votos que for aprovada chegariam a R$ 60 bilhões.

Alterações no texto já aprovado exigiriam remeter a proposta alterada para nova votação em dois turnos no Senado, atrasando o início da concessão dos benefícios. Mas já houve casos em que, para evitar o retorno de propostas de emenda constitucional à outra Casa legislativa do Congresso Nacional, o texto foi esquartejado, remetendo apenas a parte alterada ou acrescentada, aprovando o que não mudou como se o texto não tivesse sido alterado.

É o que estava seno sugerido no caso dessa medida que objetiva, já sem maiores disfarces, emprestar verniz legal à caça ao voto na eleição geral de outubro. Diante dessa possibilidade de manobra, foi aventada até mesmo a retirada do polêmico "estado de emergência", que entrou na proposta aprovada no Senado como "seguro" contra quebra da lei eleitoral.

Sem a decretação de situação excepcional, como o estado de emergência ou calamidade, só benefícios sociais previamente inscritos no Orçamento poderiam ser concedidos em anos eleitorais. O relator Danilo Forte aguardava pareceres técnicos para definir a proposta de PEC que vai apresentar. Seguro morreu de velho e ficou tudo como estava.

Duvidoso, no fim da história, que tanto esforço, com tantas quebras de regras legais, consiga virar o jogo eleitoral ou a atual tendência de baixo crescimento com inflação para 2022 e, mais ainda, para 2023.

A grande expectativa bolsonarista é que os novos auxílios repitam a situação registrada em 2020, quando o auxílio emergencial de R$ 600 mensais, decidido pelo Congresso, e que alcançou, por cinco meses, quase 70 milhões de pessoas, deu um gás na aprovação de Bolsonaro, de acordo com as pesquisas de opinião da época. Há, contudo, diferenças entre aqueles tempos e os atuais, que sugerem cautela na transposição sem filtros de um período para o outro.

Para começar, o efeito não foi imediato, só foi aparecer com clareza cinco meses depois do início das transferências. O auxílio começou a ser pago em abril, mas 60% dos eleitores ainda desaprovavam o governo Bolsonaro em junho. Apenas em outubro a aprovação empatou com a desaprovação.

Além disso, a inflação, na época, era muito baixa, enquanto agora roda nos dois dígitos, com mais pressão em alimentos, o item de consumo em que pobres concentram suas despesas. Em agosto de 2020, a inflação no ano nem chegara a 1% e se limitava a 2,5% em 12 meses. Em maio de 2022, a inflação do ano já chegava perto de 5% e avançava a 11,7%, em 12 meses.

Especificamente no caso de alimentos e bebidas, a alta de preços, em 12 meses, vai a 13,5%. Em 2020, R$ 600 mensais compravam uma cesta básica em todas as capitais, enquanto hoje o mesmo valor compra, em média, menos de 80% da cesta básica. Corrigido pela variação do IPCA (Índice de Preços ao Consumidor Amplo) nos últimos dois anos, só com R$ 720 seria possível comprar o que se adquiria em 2020 com R$ 600.

O volume de recursos que pode entrar em circulação com todos os benefícios que estão sendo concedidos é elevado e, em circunstâncias normais, dentro de um certo lapso de tempo, poderia mexer, positivamente, com os índices da economia. Mas é preciso ter cautela nas avaliações. Somado todos os recursos que já foram despejados pelo governo ao longo do ano — algo em torno de R$ 200 bilhões — ainda será menos de um terço do que foi aplicado em 2020, limitando a queda da atividade econômica a menos da metade do previsto antes dos auxílios, financiamentos e postergação de pagamentos.

Juntamente com o fato de que os benefícios serão temporários — valendo por seis meses, se começarem a ser concedidos ainda em julho, ou cinco meses, se começarem agosto —, deve-se considerar ainda que parte dos efeitos das medidas adotadas, como a antecipação de décimo terceiro salário do INSS e retirada de parcelas do FGTS, — já se esgotaram.

Restam ainda outros obstáculos, além da incerteza de que os recursos chegarão rápido ao maior número possível de beneficiados, depois dos furos que o Auxílio Brasil promoveu no Cadastro Único. Num ambiente eleitoral polarizado, crescem as possibilidades de judicialização das bondades aprovadas em meio a ampla lambança jurídica e institucional. Muito mais do que isso, a dicotomia entre contração monetária, com o aperto ainda em curso da política de juros pelo Banco Central, e expansão fiscal improvisada na emenda dos benefícios sociais eleitorais, tende a ampliar a balbúrdia em que se encontra a economia — do qual a pressão que se verifica sobre a cotação do dólar, com seu previsível efeito de manter a inflação mais alta, é um dos primeiros reflexos negativos.