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José Paulo Kupfer

REPORTAGEM

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Digitalização pode permitir revolução nas contas públicas, diz especialista

Economista José Roberto Afonso - Divulgação/FGV Ibre
Economista José Roberto Afonso Imagem: Divulgação/FGV Ibre

20/01/2023 04h00

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Não faltam palpites sobre como equilibrar as contas públicas, o grande nó a desatar na economia, depois do governo desastroso de Jair Bolsonaro. Nessa hora de ruídos, a palavra do verdadeiro especialista no tema se torna mais valiosa.

Entre o mar de "soluções" simples — e em geral equivocadas — para um problema complexo, o economista José Roberto Afonso apresenta caminhos fora da caixa. Afonso é um autêntico especialista em contas públicas, objeto de suas pesquisas e estudos há pelo menos 40 anos. Não sem razão, o hoje professor do IDP (Instituto de Direito Público), de Brasília, e pesquisador do CAPP (Centro de Administração em Políticas Públicas), da Universidade de Lisboa, em Portugal, é referência na área. Afonso é também fundador e vice-presidente do FIBE (Fórum de Integração Brasil Europa).

Radicado em Portugal, Afonso foi o coordenador da equipe técnica que assessorou o Congresso Nacional na formulação da LRF (Lei de Responsabilidade Fiscal), em vigor desde 2000. Ninguém mais do que ele tem conhecimento e experiência nessa questão complicada. Na entrevista a seguir, o economista analisa a situação das contas públicas brasileiras e apresenta soluções. A principal delas é bastante original: em lugar de apenas cortar gastos aqui e ali ou somente aumentar receitas, tributando mais este ou aquele segmento, promover a digitalização em larga escala das informações econômicas produzidas por empresas e pessoas.

Leia a entrevista:

São muitas as críticas ao pacote fiscal lançado pelo ministro Fernando Haddad, visando equilibrar as contas públicas já em fins de 2023. Em geral, os críticos vêm excesso de otimismo nas ações anunciadas. Qual a sua opinião?

Vejo como um primeiro passo, numa ação conjuntural e de curto prazo. Mas vejo também que estamos num momento de transição muito forte, no mundo e, em particular, no Brasil, e que deveríamos aproveitar esse momento para ir mais longe. Temos questões mais estruturais a nos confrontar, inclusive na área fiscal e tributária.

Para isso contamos com uma democracia que, na minha opinião, resistiu à transição e à tentativa de tumultuá-la. Vivemos um momento de transição, de exigência de mudanças. Observo dificuldades de compreensão desse momento, em particular no mercado financeiro.

Que mudanças estruturais seriam essas, na área tributária?

Vou dar um exemplo de que já estamos no século 21, mas nem todos se aperceberam disso. O exemplo é a própria história de Lula e do Partido dos Trabalhadores. Lula nasceu para a política como líder sindical e à frente de um partido de trabalhadores empregados com carteira assinada. Nos tempos atuais, emprego não é mais sinônimo de trabalho, muitos trabalhadores jamais serão empregados, não terão proteção social, nos termos das hoje existentes.

A previdência, até mesmo a previdência privada, que dirá a pública, no Brasil e no mundo, está baseada na taxação de salários. E os salários vão continuar perdendo muito espaço na economia. A arrecadação federal subiu muito em 2022, mas a receita previdenciária foi a que menos se recuperou. Nosso problema mais estrutural é na tributação de salários, na tributação do emprego, uma base que vai encolher.

Qual deveria ser a lista de prioridades, na área fiscal e tributária, diante desse quadro?

Como o Brasil é um estado democrático e federativo, a primeira providência, no meu entender, é pacificar a relação entre os Poderes, pactuar com os outros Poderes e com as esferas estaduais e municipais. A coordenação intergovernamental e intrapolítica é a prioridade.

Não adianta dispor dos projetos técnicos mais brilhantes se não pactuar com o Congresso, se os outros Poderes e esferas de governo não estão convencidos de que aquele é o melhor projeto. Nesse sentido, Lula está tentando o caminho que considero correto para enfrentar o problema, que é o de aproximar Poderes, aproximar governos.

Feito isso, quais os passos seguintes?

Apontaria dois grandes caminhos: um caminho gerencial e um caminho institucional, legal. O caminho gerencial é o que pode dar maior resultado mais imediato. É o mais importante pelo forte impacto positivo nos gastos públicos. Já vimos que não adianta criar regras, inseri-las na Constituição e coisas assim. O que pode dar mais resultados chama-se digitalização.

Digitalização?

Exatamente. Esse é um mundo que ainda está longe de ser explorado em todo o seu potencial. É preciso dar um choque nessa área. Isso é o que reduz despesas e expande a eficiência das políticas públicas. Uma lei do Congresso determinando que o CPF seja o único número exigido do cidadão, aprovada no fim do ano e sancionada agora pelo novo governo, é um primeiro passo importante nessa direção.

Se quisermos, isso permite fazer uma revolução na gestão pública. Para começar, por exemplo, evitaria os desperdícios com auxílios emergenciais pagos a quem não tem direito. Bastaria cruzar os dados do cadastro de pessoas vulneráveis com os da Receita Federal.

Quem tem retenção de imposto na fonte não pode receber auxílio emergencial. Milhares de servidores públicos, militares e até empresários receberam auxílios sem ter direito. Olha a quantidade de gasto público que poderia ter atendimento muitos dos necessitados que ficaram de fora. Esses cruzamentos já são hoje perfeitamente possíveis e a ideia é expandir para todo o sistema econômico. Há um problema de sistemas na gestão das contas públicas, e as ferramentas digitais estão aí para resolvê-lo.

Esse tipo de racionalização tributária tem de ser feita também com as empresas. Como as pessoas físicas, com o CPF, as empresas deveriam ter um único número de identificação, o CNPJ. Essa base de dados única é que tem de nortear a formulação das políticas públicas. A ideia seria fazer uma digitalização radical no gasto público e na cobrança de impostos.

Como seria essa digitalização radical?

É claro que não se faz uma revolução digital como a que estou imaginando de uma hora para outra. Mas eu sou otimista com relação a esse desafio. O caso brasileiro de maior sucesso no mundo é um caso de digitalização e informática: a urna eletrônica.

Basta verificar todo o processo que envolve a construção do sistema digital de votação e de apuração de votos para entender pelo menos duas coisas. A primeira é que é possível fazer e que sabemos fazer. A outra é a economia de recursos públicos que permite.

Essa revolução digital tem de ser feita em plano nacional. Não adianta o governo federal desenvolver um projeto que não envolva estados e municípios. Estamos falando de bens e serviços comprados em 80% do seu volume total por estados e municípios.

O governo federal é grande na hora de transferir renda — ou seja, pagar juros e aposentadorias —, mas é pequeno, em relação a estados e municípios, quando se fala de compra de bens e contratação de serviços. Voltamos então à questão lá do início, da pactuação entre os Poderes e os entes governamentais.

E no lado da arrecadação?

No lado da arrecadação, houve avanço grande no passado com o Imposto de Renda, mas depois ficou pelo caminho e tem muito a melhorar. Falta avançar nos cadastros, na digitalização, com números únicos de pessoas físicas e jurídicas, e integrar as bases de dados. O fisco da cidade de São Paulo tem de falar com o fisco do estado de São Paulo e os dois com o fisco do governo federal. A mesma coisa para os 5,5 mil municípios brasileiros e os 27 estados.

Talvez poucos saibam, mas as Forças Armadas — o Exército principalmente — dispõem de sistemas avançados de georreferenciamento de obras. Todas as obras que eles tocam estão muito bem documentadas e registradas em boas bases de dados. Por que não pegar carona nessa experiência das Forças Armadas para outros setores?

Imagino o dia em que, a partir de uma base de dados com informações georreferenciadas de todas as empresas, a Receita Federal seria capaz de enviar direto a elas uma guia de recolhimento de imposto, baseada no faturamento ou no lucro. Essa guia poderia até ser paga em débito automático, com possibilidade, claro, de contestação quando empresa discordasse do lançamento.

Quais seriam as medidas mais eficientes do ponto de vista institucional?

Aqui está claro que temos de repensar o conjunto de leis e regras existente. Tem coisas boas, mas falhou em vários sentidos e tem lacunas. Nenhuma Constituição no mundo abriga tanta matéria fiscal e tributária quanto a brasileira, e a verdade é que o sistema não funciona. Estou convencido de que não adianta ficar enfiando leis na Constituição. Ao contrário, quanto mais você entope a Constituição com regras fiscais e tributárias, menos funcional fica o sistema.

Temos de parar aqui no Brasil de querer simplificar o que é complexo. Nenhum país do mundo tem um único imposto ou uma única regra fiscal de gasto, de dívida, seja do que for. Não existe uma bala de prata que resolva tudo nessa área.

O teto de gastos é um exemplo de tentativa de simplificar coisas complexas, e que não funciona?

Sim, é bem equivocado achar que uma única medida é capaz de resolver a questão fiscal — seja teto de gastos, teto de dívida ou qualquer coisa nessa linha. Essa é uma invenção precária, muito aceita no mercado financeiro, mas nem o próprio mercado financeiro funciona com base numa regra única.

O debate na área fiscal está parecendo futebol: todo mundo entende e dá palpite. Mas é evidente que a muitos faltam bagagem, formação e experiência. Essa não é uma área simples e ainda está coalhada de caixas pretas.

Falando nisso, outra coisa que precisa acontecer para que se alcance um sistema fiscal eficiente é ter menos preconceito e menos ideologia nessa matéria. No caso do buraco na Americanas, por exemplo, fala-se que ocorreu inconsistência contábil. Agora, se é governo, é maquiagem, pedalada. Ninguém rotula as manobras fiscais de governos como "inconsistência contábil".

Mas a verdade é que os governos vivem dando mostras de irresponsabilidade fiscal.

Discordo em parte. Diferentemente de muitos, acho que a cultura da responsabilidade fiscal foi e está sendo bem sucedida no Brasil. Mas isso se restringe aos estados e municípios. Onde falta responsabilidade fiscal é em Brasília. Estados e municípios vão muito bem na parte fiscal.

Da LRF, no ano 2000, para cá, a dívida dos estados caiu pela metade, em percentagem do PIB. No caso dos municípios, ousou dizer, em dois anos, quando acabar o mandato dos atuais prefeitos, de acordo com as tendências, haverá mais dinheiro em caixa do que dívidas. Agora, no caso do governo federal, no mesmo período, tudo o que estados e municípios reduziram de dívida, aumentou em dobro. O governo federal não tem limite de dívida e não se submete aos rigores da LRF que afetam estados e municípios.