José Paulo Kupfer

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Opinião

Acabar com rotativo e limitar parcelado sem juros é como tirar sofá da sala

Não se sabe quem puxou a orelha do presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, depois que ele revelou que estudava acabar com o crédito rotativo nos cartões de crédito — o parcelamento da fatura do cartão, que cobra juros estratosféricos de mais de 400% ao ano. Mas a puxada de orelha foi bem dada porque um problema complexo como o do atual superendividamento da população não se resolve com uma canetada.

Eliminar a modalidade rotativa do cartão de crédito e restringir o uso dos financiamentos parcelados sem juros no cartão — ideia que bancos incluíram de carona nas mudanças que Campos Neto anunciou estarem em estudo — é como tirar o sofá da sala para impedir que filhos fiquem aos amassos com namorados. Sem o sofá, os amassos não vão acabar, só mudar de lugar.

Cartões são parte grande na escalada do crédito

O problema é gigante. O volume total de crédito a pessoas físicas voou nos últimos cinco anos, mesmo com os juros nas alturas. Chegou ao equivalente a 35% do PIB em 2022, alcançando a cifra de R$ 3,5 trilhões. Cerca de 60% desse total, somando R$ 2 trilhões, foi movimentado em cartões de crédito.

É grande a parte dos cartões na escalada do crédito, do endividamento e da inadimplência. Quase 200 milhões de plásticos são usados, rotineiramente, por 60% dos brasileiros. A modalidade do parcelado sem juros responde por R$ 1 trilhão, metade do total movimentado com cartões de crédito.

São 70 milhões com dívidas em atraso

Não há dúvida de que está sobrando mês no fim do salário, num contexto de precarização do trabalho e aumento da informalidade. Generalizou-se a situação na qual o crédito opera como extensão da renda, antecipando consumo e absorvendo poupanças futuras.

Quase 30% da renda das famílias brasileiras estão comprometidos com dívidas, o que contribui para que mais de 70 milhões de cidadãos estejam com dívidas em atraso. Perto de metade da população em idade de trabalhar não consegue pagar em dia todas as contas.

Também não há dúvida de que uma modalidade de crédito que cobra de juros por ano cinco vezes o valor do bem ou serviço financiado, como é o caso do rotativo do cartão de crédito, não tem viabilidade já em médio prazo. O cidadão que contratar esse tipo de financiamento está condenado a engrossar os cadastros de negativados.

"É possível classificar esse tipo de financiamento como predatório", diz o economista Lauro Gonzalez, coordenador do FGVCemif (Centro de Microfinanças e Inclusão Financeira, da Fundação Getúlio Vargas). "O próprio nível altíssimo da taxa cobrada é uma das causas da inadimplência".

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Uma das saídas inicialmente levantadas pelos bancos seria restringir o parcelamento sem juros no cartão, modalidade que, de acordo com a visão dos bancos, levaria ao sufoco financeiro e ao recurso ao financiamento da própria fatura do cartão de crédito, no rotativo de juros descontrolados.

Parcelado sem juros tem juros

O "parcelado sem juros no cartão" é uma jabuticaba brasileira. Sucede o cheque pré-datado, invenção dos tempos analógicos, resultado da alta criatividade nacional, com origem numa longa história de hiperinflação. Assim como o pré-datado, com juros camuflados, o "parcelado sem juros" também cobra juros, mas igualmente camuflados.

Esses juros, simplificadamente, correspondem ao desconto que não é concedido na compra a prazo, se a compra fosse à vista. Por exemplo, um produto que custa R$ 100, mas poderia ser comprado à vista com desconto de 10% no valor, parcelado em seis vezes sem juros no cartão estará, na prática, pagando juros de 3,2% ao mês, ou mais de 45% em um ano.

Além dos juros, o preço cheio de venda embute a taxa que o comerciante paga ao banco emissor do cartão de crédito, pela antecipação do recebimento dos pagamentos parcelados. Exatamente como ocorria com os cheques pré-datados, mas com as facilidades operacionais oferecidas pela tecnologia digital.

Parcelar até caber no bolso continuará

Depois da revelação dos estudos para acabar com o crédito rotativo no cartão e desincentivar o parcelado sem juros, veio à luz do dia uma batalha surda que já era travada entre bancos e comerciantes, sob os olhos do governo, via Ministério da Fazenda e Banco Central. O tamanho da briga pode ser avaliada pelo número de manifestos de associações de empresas de meios de pagamento e do comércio, sob a forma de informes publicitários na mídia.

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A reação às limitações do parcelado sem juros foram fortes. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, negou que o governo estude limitar a modalidade. A Febraban (Federação Brasileira de Bancos), que, de início pretendeu culpar o parcelado sem juros pelas altas taxas de juros do rotativo e a consequente inadimplência, recuou e botou panos quentes na história.

Representantes do comércio e de empresas de cartões, de seu lado, dramatizaram as perdas para consumidores e a economia, se o parcelado sem juros fosse afetado. Para Lauro Gonzalez, do FGVCemif, mesmo com desincentivos, e a aplicação de taxas ou mesmo alguma cobrança de juros, o parcelado no cartão continuaria como opção para muitos consumidores. "Do ponto de vista do consumidor, continua valendo a estratégia de parcelar o que cabe no bolso, não considerando tanto a taxa de juros", explica. "Não existe uma 'bala de prata' para o problema do superendividamento", conclui o economista.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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