José Paulo Kupfer

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Opinião

No câmbio, 'rabo abana o cachorro'; por isso, real perde (e ganha) mais

A Bolsa de Valores do Japão vive um crash nesta segunda-feira (5), com queda do índice Nikkey, o principal do mercado, superior a 12%, e com ações derretendo, a exemplo do que ocorre com os papéis do Mitsubishi UFJ, maior banco japonês, que recuam mais de 20%. O mecanismo de interrupção do pregão, conhecido como "circuit braker", usado quando as ações nas bolsas está desabando, chegou a ser acionado.

No Brasil, o real seguiu as demais moedas ao redor do mundo, com mais um esticão na trajetória de desvalorização ante o dólar, que experimenta desde maio. Com picos de mais de R$ 5,80 por dólar, a cotação da moeda americana oscilava acima de R$ 5,70, ao logo da tarde.

Mais uma vez, neste novo episódio de volatilidade nos mercados, o real está entre as moedas que mais se desvalorizam ante o dólar. Ao mesmo tempo, na Bolsa brasileira, o Ibovespa se recuperava de um tombo no início do pregão. Depois de cair a 123 mil pontos, o índice operava perto de 125 mil pontos, na sessão vespertina.

"Segunda sangrenta"

Esta "segunda sangrenta" reflete reação de quase pânico entre os operadores, que contaminou os mercados globais de ativos financeiros, principalmente na Ásia e na Europa. Especialistas entendem que o movimento de venda de ativos financeiros nos mercados ao redor do mundo foi provocado pela intensificação de sinais de recessão econômica nos Estados Unidos, e por uma alta incomum nos juros japoneses, que leva o iene a uma forte valorização ante o dólar. Ainda não se sabe a extensão e a duração do movimento.

Além disso, a alta dos juros, no Japão, quebrou montanhas de ações de arbitragem de taxas ("carry trade", na expressão em inglês usada em todos os mercados) com o iene. Com juros japoneses estáveis por longo período, os investidores contraíam empréstimos em ienes para aplicar em ativos rentáveis em outros mercados, ganhando com a diferença de taxas. Registra-se também um movimento de ajuste de posições, depois da alavancagem geral, que fez explodir cotações de ações, com formação de bolhas especulativas.

Real perde mais

A desvalorização do real em 2024, até os primeiros dias de agosto, já chegou a 18%, de longe a maior entre as moedas de países emergentes. A lira turca, por exemplo, perdeu 14%, no mesmo período, enquanto o peso mexicano desvalorizou 13%.

Há razões internas e externas para as perdas do real ante o dólar. No lado externo, a perda de valor da moeda brasileira tem origem na demora do Fed (Federal Reserve, banco central americano) em iniciar um novo ciclo de cortes nas taxas de juros de referência no mercado americano. No âmbito doméstico pesam as incertezas em relação à política fiscal e ao cumprimento do arcabouço fiscal — nova regra de controle das contas públicas e da dívida bruta —, mais recentemente reforçadas por dúvidas sobre a consistência da política de juros, nos meses finais de Roberto Campos Neto à frente do Banco Central.

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Esses aspectos, contudo, não explicam integralmente por que o real sofre mais do que moedas de outros emergentes. Um elemento, quase sempre esquecido nas análises, ajuda a entender os movimentos em geral mais intensos da moeda brasileira, em relação ao dólar.

Câmbio futuro

Esse elemento é o mercado de câmbio futuro na B3. Esse mercado, que negocia em reais contratos de compra e venda de dólar, é uma peculiaridade brasileira. Na prática, negocia dólares, mas em reais. Como é transacionado na moeda local, suas restrições à entrada e saída de recursos, bem como em relação a quem pode operar, são menores do que no mercado à vista.

O resultado é que os negócios no mercado futuro, diferentemente do que ocorre em outros países, são muito mais volumosos — e, portanto, mais líquidos — do que no mercado de dólar à vista. Calcula-se que o mercado de câmbio futuro é até dez vezes maior do que o mercado de câmbio à vista.

Usado por instituições financeiras e investidores — com forte presença de estrangeiros — para garantir proteção de negócios em dólar, arbitrar taxas nos mercados de derivativos e à vista ou simplesmente para especulação, o mercado futuro, por seu maior volume, porosidade e liquidez, acaba funcionando como base para a determinação da cotação à vista da moeda americana no mercado brasileiro — e não o contrário, como é na maioria dos países, em que o mercado à vista é onde se formam as cotações dos derivativos de câmbio.

Mercado peculiar

Na expressão do economista Márcio Garcia, professor titular da PUC-RJ (Pontifícia Universidade Católica, do Rio de Janeiro), experiente pesquisador dos mercados de moedas estrangeiras, no caso do mercado cambial brasileiro, "o rabo abana o cachorro". Não se trata de coincidência o fato de que a B3 está entre as três maiores bolsas de derivativos de dólar do mundo, ao passo que o mercado à vista não figura nem entre os 20 maiores.

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Não é comum a referência à peculiaridade do mercado de câmbio futuro no Brasil, quando se procura explicar as desvalorizações mais intensas do real ante o dólar — e muito menos quando, no sentido inverso, o real surge entre as moedas mais valorizadas. Mas a verdade é que sempre — repetindo, sempre —, independentemente da situação da economia brasileira, e das políticas econômicas dos governos de turno, isso acontece.

Fator esquecido

Em todos os episódios de valorização do dólar, em relação a outras moedas, o real figura entre as que mais se desvalorizam. No sentido contrário, o mesmo ocorre: o real aparece entre as moedas mais valorizadas, em relação ao dólar, quando o movimento é de perda da moeda americana, na comparação com as demais, seja qual for a situação — e os problemas — da economia brasileira, naquele momento.

Resumindo, a liquidez e a facilidade de entrar e sair do mercado brasileiro de câmbio futuro é parte importante, mas muitas vezes negligenciada, nas explicações para o fato de que o real figure entre os campeões globais, nas perdas e nos ganhos ante o dólar, nos episódios de valorização e desvalorização da moeda americana.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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