'Quase apanhei até das mulheres ao defender cotas em empresas', diz dona do Magazine Luiza
Na sede paulistana do Magazine Luiza, oitava maior empresa brasileira do setor varejista, não há paredes, nenhum homem vai trabalhar de gravata, e bermudas até o joelho são liberadas.
De uma sala de vidro no meio do escritório, a executiva Luiza Helena Trajano acompanha o vai e vem dos funcionários e os chama em voz alta pelo nome quando tem algo a resolver.
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Engajada em campanhas contra a violência doméstica e o assédio sexual na empresa, Luiza conta em entrevista à BBC Brasil que "quase apanhou" de colegas executivas quando começou a defender publicamente cotas para mulheres nos conselhos de administração de companhias.
"As próprias mulheres me falavam que o critério para a ascensão deveria ser a meritocracia. E eu dizia: 'Então espere 110 anos'", afirma.
Após liderar o Magazine Luiza por 25 anos, período em que a empresa familiar se tornou uma potência do setor, ela passou o bastão em 2016 ao filho Frederico Trajano, novo diretor-superintendente (CEO) da companhia.
Luiza permanece à frente do conselho de administração do grupo e hoje lidera o movimento Mulheres do Brasil, que busca ampliar a presença feminina em espaços de poder.
Mesmo após se expandir por todo o Brasil, a empresa nascida em 1957 em Franca (SP) mantém ares interioranos. Placas de ruas da cidade foram espalhadas pelo escritório em São Paulo, à beira do rio Tietê, e na parede uma citação do viajante francês Auguste de Saint Hilaire (1779-1853) menciona o "aprazível descampado, em meio a extensas pastagens salpicadas de tufos de árvores" onde Franca foi fundada, no nordeste paulista.
Confira os principais trechos da entrevista.
BBC Brasil - Como avalia o cenário no Brasil hoje?
Luiza Helena Trajano - Desde que assumi a superintendência do Magazine Luiza, em 1990, vivi várias crises. Antigamente, um país espirrava lá atrás e a gente ia para a UTI. O que aconteceu agora foi uma crise econômica e política muito duradoura.
Foi muito difícil. Mas somos um país que tem um consumo muito bom - as pessoas gostam de ter casa bonita, geladeira inox. Só 10% da população tem TV de tela grande, só 5% tem ar condicionado. Nosso potencial é muito grande.
E aconteceu uma coisa legal: os brasileiros procuraram pagar a dívida em vez de pegar mais. A inadimplência ficou sob controle. Antigamente a inadimplência crescia muito nas crises. Cresceu a maturidade do povo.
BBC Brasil - A crise está superada?
Luiza Trajano - Acho que agora o mercado brasileiro não está mais misturando tanto economia e política. Você vê notícias bombásticas de presidente, mas o dólar não sobe tanto, a bolsa não cai tanto. Começou a separar. Países maduros fazem isso.
Sinto que o crescimento do PIB, a estabilidade da moeda, o trabalho feito no Ministério da Fazenda, nos deram fôlego. Você sente a luz no fim do túnel.
BBC Brasil - Esse cenário está consolidado mesmo com a perspectiva de uma mudança no governo após as eleições?
Luiza Trajano - Está mais consolidado. De repente pode ter uma bomba que atrapalhe. Mas a eleição não está mexendo tanto com o povo, parece que o povo não está muito preocupado com isso.
BBC Brasil - Alguns jornais noticiaram que a senhora era uma das signatárias do movimento Brasil 200, capitaneado pelo empresário Flávio Rocha, da Riachuelo (o movimento prega bandeiras liberais na economia e conservadoras nos costumes). Mas seu nome não consta no site do movimento. A senhora apoia o movimento?
Luiza Trajano - Gosto muito do Flávio, participei do IDV (Instituto para Desenvolvimento do Varejo) com ele por muito tempo. Sei que ele tem uma política de liberdade, de mercado, e acho essa política muito boa. Mas, como sou do movimento Mulheres do Brasil, tenho de ser muito apartidária.
BBC Brasil - A senhora tem alguma preferência entre os candidatos que anunciaram intenção de concorrer à Presidência?
Luiza Trajano - Primeiro precisa definir quem são os candidatos.
BBC Brasil - A senhora teria uma simpatia especial por uma candidatura do Flávio Rocha?
Luiza Trajano - Eu tenho uma amizade especial com o Flávio.
BBC Brasil - Como o governo Temer será lembrado?
Luiza Trajano - Foi positivo ele ter aprovado algumas medidas antipopulares, necessárias para o próprio povo, como a reforma trabalhista. Havia muita burocracia, muita amarração. Ele vai ser lembrado por ter feito isso. Por outro lado, não foi um governo eleito pelo povo, né? Por isso a rejeição dele.
BBC Brasil - Acha que a presidente Dilma Rousseff sofreu um impeachment ou um golpe?
Luiza Trajano - Prefiro não entrar nisso.
BBC Brasil - A senhora mantém a amizade, conversa com a ex-presidente Dilma?
Luiza Trajano - Não converso com ela, porque não a vejo. Ela me chamou para ser ministra, porque sou uma voluntária da causa da pequena e média empresa (o convite foi recusado). Sempre a achei uma pessoa bem honesta, bem direita, e sempre falei pra ela algumas coisas, porque ela me ouvia. Sou amiga da Dilma como sou do (Geraldo) Alckmin. Por ela ser mulher, talvez tivesse mais acesso.
BBC Brasil - Como a senhora se define politicamente? Está mais à direita ou à esquerda?
Luiza Trajano - Não sou nem esquerda nem direita. Transito muito no interior do Brasil. Sei o que não é ter água, sei como a Bolsa Família foi importante, assim como sei como o livre mercado é bom também.
Uma proposta pode ser boa vinda da esquerda ou da direita. A nova lei trabalhista, por exemplo, tenho certeza de que não prejudicou o trabalhador, de jeito nenhum. Há dez anos estudo essa lei trabalhista. Ela é a democracia da vontade.
O funcionário trabalhava domingo e era obrigado a tirar dois dias de folga na próxima semana. Fui totalmente a favor dessa medida - que nem chamo reforma, porque continua tudo igual, mas deu muito mais diálogo.
BBC Brasil - A reforma foi bem recebida entre os trabalhadores do Magazine Luiza?
Luiza Trajano - Sim, porque não mudou nada. Antes, se uma loja nossa no interior quisesse abrir no domingo porque era vantajoso para os funcionários, ela não poderia abrir se o sindicato não deixasse, mesmo com 100% de assinaturas dos funcionários.
Valorizo muito os sindicatos, mas acho que tem que ter negociação, um diálogo maduro entre empregado e patrão. Hoje ninguém é bobo, o empregado sabe muito bem seus direitos.
Todos os direitos continuaram - 13º, férias, jornada de 40 horas semanais. Trabalhou domingo, tem de ter dois dias de folga, só que podem negociar de uma maneira menos engessada.
(Presidente da União Geral dos Trabalhadores - principal central que representa funcionários de empresas varejistas - Ricardo Patah contesta a fala de Luiza. Ele diz que funcionários do Magazine Luiza e outras empresas do ramo têm expressado à central preocupação com a nova legislação. Para ele, a Reforma Trabalhista prejudicou trabalhadores e pôs em xeque conquistas negociadas entre sindicatos e companhias nos últimos anos.)
BBC Brasil - Sindicatos dizem que os funcionários estão mais vulneráveis, e há críticas à perspectiva de que as empresas passem cada vez mais a tratar funcionários como empreendedores associados - modelo do Uber, por exemplo.
Luiza Trajano - Isso não me preocupa. Na empresa, nós tratamos os funcionários como se fossem donos. Todos ganham conforme o lucro da empresa. No ano passado, como tivemos um ano bom, todos ganharam uma premiação pelo resultado. E como foi muito bom, meu filho deu um cartão de R$ 200 para todo mundo, que não era nem previsto.
Eles participam das decisões, têm um canal aberto comigo para denunciar o que não está legal. Devem cumprir os nossos princípios de transparência e honestidade. São muito cobrados, e, se não seguirem essas regras, vão embora por justa causa.
BBC Brasil - Como vocês têm lidado na empresa com o assédio e a violência contra a mulher?
Luiza Trajano - Já tínhamos trabalhado bastante com deficiência física e igualdade racial na empresa. Tínhamos cotas. Hoje nem precisamos mais. Temos muitos líderes e trainees negros.
Mas nunca tinha tratado da violência contra a mulher, porque achei que isso estivesse muito longe de nós, que é o que todo mundo acha. De repente fui pega por uma funcionária de 37 anos que foi morta à noite pelo marido a canivetadas. Ele também se matou, deixou um filho de nove anos.
Criei com o RH um disque-denúncia, chamamos promotoras, juízas, as ONGs que trabalham com isso. Montamos um comitê para fazer com que pessoas conversassem sobre isso, para criar um boletim para meus colegas presidentes de empresas e sugerir políticas públicas.
A violência começa com o assédio. Nossa empresa é carinhosa, a gente abraça, beija. Mas assédio sexual é inegociável. Fiz uma pesquisa interna com os 18 mil funcionários para saber o que era assédio, o que a pessoa não queria na sua unidade. É muito difícil definir, porque o que é assédio para mim talvez não seja para você. Ainda estamos num processo educativo. O homem foi acostumado a dar cantada e agora vai ter de mudar.
BBC Brasil - Já houve algum impacto?
Luiza Trajano - Na questão da violência, notamos muito. Graças a Deus não tivemos mais nenhum caso. E houve quase 80 denúncias. Evitamos muita morte.
Temos trabalhado com homens depressivos também, preventivamente. Falamos que, se não estiverem bem, temos psicólogo para dar cobertura. Geralmente, eles separam, começam a ficar depressivos e de repente podem fazer qualquer bobagem com a mulher.
É gozado que muitos que estão denunciando são homens que veem uma mulher machucada. Eles nos procuram e dizem: "nessa loja tem uma pessoa que não está legal". Os homens estão nos ajudando.
BBC Brasil - E o programa contra o assédio? Tem dado resultados?
Luiza Trajano - Começamos há um mês. Os líderes foram obrigados a conversar com a equipe sobre o que era assédio sexual e moral. Tem gente que não quer que chamem sua atenção na frente dos outros, outros não querem ser tocados. A primeira fase é de mobilização.
Brincadeira é uma coisa que ficou muito séria. Já falamos para parar qualquer tipo de brincadeira. É legal que até pessoas maduras, que brincavam com derrota de time de futebol, estão decidindo não brincar mais.
BBC Brasil - Como responde a quem diz que há exagero em limitar as brincadeiras e que existe uma "ditadura do politicamente correto"?
Luiza Trajano - É isso o que eu não quis. Não quis nem exagero, nem fechar os olhos. Por isso fizemos uma consulta de baixo para cima para saber o que o grupo não queria.
BBC Brasil - Os chefes estão se sentindo acuados?
Luiza Trajano - Não. Trabalhei muito para dizer que a primeira coisa que temos de fazer é um perdão, entender que isso (assédio) se fazia porque era costume. Fui para a TV Luiza (canal interno da empresa) dizer que ninguém vai ser mandado embora, a não ser que tenha feito algo muito grave.
Ninguém vai ser mandado embora por trazer isso à tona. A partir do momento que trouxer, tem que se respeitar. Faremos um processo educativo até dizer: é proibido, acabou. Se não parar, vai ser mandado embora.
BBC Brasil - Sua defesa de cotas para mulheres e minorias em empresas enfrenta resistência entre colegas executivos?
Luiza Trajano - Acho que já houve mais resistência. Hoje a diversidade e o propósito de uma empresa são cobrados pelo próprio cliente. Acho que eles entendem mais isso hoje.
Quando comecei a falar em cotas, quase apanhei, até das próprias mulheres. O movimento Mulheres do Brasil levou ao Congresso um projeto de lei que institui cotas para mulheres em conselhos de administração de empresas públicas. Foi aprovado no Senado e agora vai passar pela Câmara.
Temos 7% de mulheres nos conselhos de empresas com ações na bolsa. Se eu e as filhas de donos de empresas não formos contadas, o índice cai para 2%. Vamos levar 110 anos para igualar a presença masculina. As próprias mulheres (executivas) me falavam que o critério para a ascensão deveria ser meritocracia. E eu dizia: "Então espere 110 anos".
É uma luta que não é por mim, é para minhas colegas executivas que, quando chegam num ponto da carreira, não são chamadas para os conselhos, enquanto os homens são.
BBC Brasil - Muitos apontam sua trajetória como um exemplo de meritocracia.
Luiza Trajano - Não sou contra a meritocracia, pelo contrário. Só que existem limitantes que fazem com que mulheres não cheguem ao conselho. Conheço mais de cem mulheres que poderiam ir para conselhos.
Você não ser lembrada não é meritocracia. Agora, estar lá só porque é mulher, também não. A cota faz lembrar. Ninguém fica num lugar se não tiver competência.
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