A reforma da Previdência está mais justa após aprovação das emendas pela Câmara?
A reforma da Previdência enviada pelo presidente Jair Bolsonaro ao Congresso foi aprovada em primeiro turno na Câmara dos Deputados na semana passada, após quatro dias intensos de votações. O texto, porém, sofreu uma série de mudanças nesta etapa da apreciação, que favoreceram tanto os segmentos mais pobres como preservaram grupos que têm renda mais alta que a média da população.
Após essa mudança, a proposta ficou mais justa? Para os economistas ouvidos pela BBC News Brasil, em alguns aspectos sim, principalmente ao barrar as mudanças para os que ganham até um salário mínimo e manter o aumento da contribuição previdenciária sobre os que ganham mais.
Além disso, deputados rejeitaram alterar a aposentadoria rural e o BPC (benefício pago a idosos muito pobres) por entenderem que afetaria grupos de baixa renda.
"Está sendo, sem dúvida, uma reforma do Legislativo. Felizmente, está a anos-luz do texto proposto pelo governo", afirma a economista Joana Mostafa, Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea).
No entanto, a decisão de tirar da reforma estados e municípios preservou segmentos que ganham mais que a maioria dos brasileiros, como promotores e juízes estaduais. Além disso, a regra de transição para servidores federais foi suavizada.
Em geral, [a versão aprovada na Câmara] é um texto bem justo, quando comparado ao texto inicial de Bolsonaro ou ao de Michel Temer. Infelizmente, parte da progressividade [impacto maior sobre os que ganham mais] foi diluída com a retirada de estados e municípios.
Pedro Nery, consultor legislativo do Senado
O outro lado da moeda dessas alterações é que elas devem reduzir significativamente o valor a ser economizado pela União. A meta do ministro da Economia, Paulo Guedes, é que reforma da Previdência gere ganhos de R$ 1 trilhão em dez anos. No entanto, a Instituição Fiscal Independente, órgão ligado ao Senado, projeta que o texto base aprovado na Câmara na quarta-feira gera uma economia de R$ 744 bilhões.
Essas projeções ainda não levam em conta os destaques aprovados na quinta e sexta com mais alterações na proposta, como a redução do tempo mínimo exigido para acessar o piso da aposentadoria do INSS, de um salário mínimo (R$ 998), de 20 para 15 anos.
Para os que defendiam uma reforma mais dura, uma redução maior dos gastos com aposentadorias permitira ao governo investir em outras áreas importantes para atender a população de menor renda, como saúde, educação e segurança. Além disso, sustentam que contas públicas mais equilibradas contribuiriam para a recuperação da economia e a geração de empregos.
"Não existe reforma perfeita. A perfeição é uma meta e a qualidade da reforma é o quanto ela se aproxima dessa meta. Nesse sentido, a versão atual é positiva. Não acaba com privilégios, mas reduz", acredita o economista Paulo Tafner, exaltado pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia, como um dos principais especialistas em Previdência.
Vale lembrar que a reforma, por ser uma proposta de emenda constitucional, ainda terá que ser votada em segundo turno na Câmara, antes se seguir para o Senado. O governo estima que ela possa ser aprovada nas duas casas até setembro.
Quanto às previdências estaduais e municipais, ainda há expectativa que os senadores incluam novamente na reforma --se isso não ocorrer, cada estado e município terá de decidir sobre sua própria mudança.
Confira abaixo como a versão aprovada na Câmara afeta os mais pobres, a classe média e os segmentos de maior renda.
Acesso dos mais pobres à Previdência não será dificultado
Por enquanto, o texto aprovado mantém a essência da reforma proposta pelo governo --prevê que, em média, os brasileiros se aposentem mais tarde e com benefícios menores. No entanto, a versão atual permite que os trabalhadores que se aposentam com o piso do INSS continuem acessando a Previdência em termos muito parecidos com as regras atuais.
Atualmente, o trabalhador do setor privado pode se aposentar de duas formas: cumprindo um tempo mínimo de contribuição (30 anos para mulheres e 35 anos para homens); ou contribuindo por ao menos 15 anos e alcançando uma idade mínima (60 anos para mulheres e 65 anos para homens).
O governo queria elevar o tempo mínimo de contribuição para quem se aposenta por idade de 15 para 20 anos, o que foi barrado pela Câmara, já que dificultaria o acesso dos mais pobres ao INSS.
Segundo Joana Mostafa, as estatísticas mostram que os trabalhadores de menor renda sofrem mais com a instabilidade da economia, alternando períodos de desemprego, trabalho informal e com carteira assinada. Por isso, mesmo começando muito cedo a trabalhar, não conseguem contribuir por um período longo.
Análise realizada por ela a partir de dados de 2014 mostra que 61% dos que se aposentaram por idade não atingem 20 anos de contribuição. No caso de mulheres, esse percentual sobe para 69%, refletindo a interrupção da carreira por causa da maternidade ou sobrecarga no trabalho doméstico.
Já pessoas de maior renda têm mais estabilidade profissional e se aposentam mais cedo, normalmente, por tempo de contribuição. Em média, quem se aposentou pelo INSS em dezembro por tempo de contribuição tinha 54,2 anos e passou a receber R$ 2.366 por mês. Já o benefício médio concedido aos que se aposentaram por idade ficou em R$ 1.260.
Criação de idade mínima para todos afeta mais os de maior renda
Outra medida central na reforma, e considerada justa por economistas, foi mantida pela Câmara. O texto prevê que não será mais possível se aposentar por tempo de contribuição, de modo que todos os trabalhadores do setor público e privado, com exceção de algumas categorias como policiais e professores, terão de trabalhar até 62 anos (mulheres) e 65 anos (homens).
As estatísticas mostram que as mulheres que se aposentam por idade nas regras atuais o fazem, em média, aos 61,2 anos em média, próximo da nova idade proposta (62 anos).
Quem se aposenta cedo no Brasil, até antes dos 50 anos, são segmentos médios e altos. A criação da idade mínima para todos é absolutamente justa.
Paulo Tafner, economista
Cálculo do benefício preserva quem ganha mínimo, mas terá efeito sobre pobres
Além disso, ao manter o piso do INSS em um salário mínimo, a reforma também garante que os trabalhadores da ponta mais pobres não terão redução de benefício.
No entanto, todos que ganham acima do mínimo --o que inclui desde pessoas pobres a pessoas de classe média e renda mais alta-- terão de trabalhar mais do que o exigido nas regras atuais para acessar benefícios maiores.
Atualmente, as aposentadorias do INSS são calculadas com base na média das 80% maiores contribuições ao longo da vida, limitada ao teto de R$ 5.800. A proposta do governo, mantida pela Câmara, é que esse cálculo passe a ser feito considerando todas contribuições. Sem o desconto das 20% menores, os benefícios serão calculados a partir de uma base menor.
Além disso, a reforma prevê que o trabalhador que contribui pelo tempo mínimo (15 anos) terá direito a apenas 60% desse valor base. Esse percentual vai subir gradativamente ano a ano, de modo que as mulheres terão que contribuir por 35 anos e os homens por 40 anos para ter direito a 100% da média das contribuições.
"A mudança preserva quem se aposenta pelo piso, mas vai reduzir a aposentadoria de um grupo grande de baixa renda que ganha acima do salário mínimo. Esse grupo é vulnerável e terá dificuldade em contribuir por mais tempo para aumentar seu benefício", crítica o economista Nelson Marconi, professor da FGV-SP.
Ele defende que uma alternativa melhor seria aumentar a receita previdenciária taxando lucros e dividendos distribuídos por empresas a acionistas.
"É positivo criar estímulo para que as pessoas que tiverem condições de trabalhar mais contribuam por mais tempo, mas a regra proposta é muito radical", concorda Mostafa.
Mudança para servidores federais foi suavizada
No caso dos servidores civis federais, há regras diferenciadas para cálculo de benefício dependendo do ano de contratação. A reforma da Previdência de 2003, por exemplo, acabou com o direito à integralidade (se aposentar pelo último salário) e à paridade (continuar recebendo os reajustes concedidos aos servidores ativos) para os que ingressaram de 2004 em diante no serviço público.
A reforma proposta por Bolsonaro previa que os contratados antes disso manteriam esses direitos (ou privilégios, na visão de críticos), desde que trabalhassem por mais tempo que nas regras atuais. A Câmara suavizou essa mudança --será preciso trabalhar um tempo extra, mas menos do que o previsto originalmente.
Segundo dados de 2016, a aposentadoria média dos servidores civis federais era de R$ 9.000 por mês, valor que é puxado para cima pelos benefícios do Legislativo (R$ 26,8 mil em média) e do Judiciário (R$ 18 mil em média).
Diante do alto deficit da Previdência do setor público e do valor maior das aposentadorias desse grupo, Nelson Marconi considera que a proposta mais dura de Bolsonaro para acessar o benefício integral era mais justa. "E a paridade deveria acabar para os que ainda não se aposentaram", defende.
As regras do texto atual da reforma também preveem que os servidores que entraram após 2003 terão de trabalhar mais tempo para conseguir benefícios maiores.
Vale lembrar que há regras de transição para os que já estão na ativa, tanto no setor privado quanto no público.
Regra para Forças Armadas continua benéfica
Já no caso das Forças Armadas, o governo tenta mudar o regime de aposentadoria por meio de um projeto de lei, que ainda não foi analisado pela Câmara. A proposta de Bolsonaro, ele mesmo capitão reformado do Exército, é que o tempo mínimo de serviço para ingressar na reserva passe de 30 anos para 35 anos. Não há previsão de idade mínima, o que permitirá que a maioria continue se aposentando antes dos 55 anos.
A proposta também preserva os benefícios de paridade e integralidade, no que é apontado como um grande privilégio que está sendo mantido para a carreira militar. As Forças Armadas justificam essa diferença dizendo que os militares não se aposentam, mas passam para a reserva, podendo ser convocados. Na prática, porém, um percentual mínimo volta a trabalhar após sair da ativa.
O Congresso precisa endurecer essa reforma dos militares.
Nelson Marconi, professor da FGV-SP
Quem ganha mais, paga mais
A Câmara manteve intacta uma proposta do governo considerada justa pelos economistas --tornar contribuição previdenciária um pouco mais progressivas, cobrando menos de quem ganha menos e mais de quem ganha mais.
Hoje as alíquotas variam de 8% a 11% no INSS. Com a reforma, iriam de 7,5% a 14% (alíquota máxima efetiva de 11,69%). A proposta reduz levemente a cobrança da maioria dos trabalhadores que ganham até R$ 2.000.
Já cobrança sobre os servidores vai aumentar, caso a reforma entre em vigor. Atualmente, o funcionário público federal paga 11% sobre todo o salário, caso tenha tomado posse antes de 2013. Quem ingressou no serviço público depois de 2013 paga 11% até o teto do INSS, ou seja, não contribui sobre o valor que supera R$ 5.800.
Pelas novas regras, as alíquotas para os que ingressaram antes de 2013 serão proporcionais à remuneração, variando de 7,5% para o servidor que recebe salário mínimo a 22% para quem recebe R$ 39 mil ou mais.
Como a cobrança é gradativa sobre o salário, porém, a alíquota máxima efetiva ficaria em 16,78% --ou seja, o servidor com salário de 39 mil pagaria R$ 6.544 ao mês em vez de R$ 4.290 como hoje.
No caso dos militares, a alíquota não seria progressiva --o projeto de lei prevê alta de 7,5% para 10,5% da alíquota, independentemente da faixa salarial.
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