Imposto não é alto porque paga o que o país gasta, diz ex-chefe da Receita
O Brasil precisa repensar seu sistema tributário, mas, sem reformular seriamente sua estrutura de gastos, dificilmente conseguirá reduzir a carga de impostos. É o que defende Everardo Maciel, o tributarista que chefiou a Receita Federal durante os oitos anos do governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002).
"A carga tributária não é alta nem baixa. Ela é do tamanho da despesa, e a despesa é a opção de gastos ditada pelo povo", afirmou. "Se é possível diminuir os gastos, dá para cogitar reduzir a carga. Fora disso, nem pensar."
Para ele, é importante debater uma reforma tributária para o país, mas talvez não pelos caminhos que têm sido colocados. Enquanto governo e economistas debatem redução ou aumento de impostos, o hoje consultor jurídico acredita que os principais empecilhos estão na burocracia e em conceitos confusos. "Em uma lista de 190 países, o Brasil está em 184º lugar no critério de facilidade de pagar impostos, e nada disso depende dos impostos", disse.
Com ironia e rigor técnico, o pernambucano de 72 anos rebate, um a um, os principais temas debatidos hoje acerca de uma eventual reforma. Reduzir o imposto de renda? "Para quê?" Unificar impostos? "Puro simplismo." Onerar menos o consumo? "Coisa de manual antigo." Cortar desonerações? "Pode matar o negócio." Taxar dividendos? "Cria sonegação."
Foi com Maciel à frente da Receita que, em 1996, em meio a uma grande reformulação na tributação das empresas, o governo zerou os impostos sobre os dividendos, a parte do lucro que é paga aos donos e acionistas. Hoje alvo de críticas, a isenção pode ser revista pelo governo Jair Bolsonaro, mas ainda é defendida por Maciel como a solução mais eficiente.
Por outro lado, o ex-secretário vê com bons olhos a ideia de se recriar a CPMF, o polêmico imposto sobre transações financeiras instituído também durante sua gestão, em 1996, e extinto em 2007: "É um tributo barato e permitiria cortar alguma outra tributação."
Mais do que matar ideias, Maciel fala como quem quer instigar os formuladores de política a ir fundo em cada questão antes de se bater qualquer martelo. "Há riscos em uma reforma [tributária], porque ela repercute em tudo. É preciso ter prudência", disse.
Maciel falou ao UOL sobre o que deveria ser considerado em uma reforma tributária no Brasil. Veja os principais trechos.
As reformas trabalhista e da Previdência já foram feitas ou estão em debate. A reforma tributária não poderia estar mais avançada? Qual é a importância dela?
A reforma trabalhista é específica de uma lei, a CLT [Consolidação das Leis do Trabalho]. A da Previdência é também sobre temas específicos da aposentadoria. O sistema tributário é infinitamente mais complexo. Não se pode falar em "reforma tributária", são "reformas tributárias". Sistemas tributários precisam de reforma sempre, porque envelhecem, mas não há sistema tributário bom. Eles são por definição imperfeitos, porque o que é perfeito para mim não é para você. Ou seja, há riscos em uma reforma, porque ela repercute em tudo, nos contribuintes, estados, municípios, empresas, e gasta um capital político enorme. É preciso ter cautela, ter prudência, examinar com muito cuidado os problemas.
Quais são os problemas mais relevantes hoje?
São os ligados ao processo e à burocracia. Temos um sistema tributário difícil e cheio de conceitos confusos. O que é planejamento tributário abusivo? Responsabilidade solidária do sócio, substituição tributária, ágio? São conceitos indeterminados e que geram conflitos. Como resultado, temos no Brasil cerca de R$ 3,3 trilhões em litígios tributários. É mais da metade do PIB [Produto Interno Bruto]. Em uma lista de 190 países, o Brasil é o em 184º no critério de facilidade de pagar impostos, de acordo com o Banco Mundial. E nada disso depende dos impostos.
Reclama-se muito da carga tributária alta. Este problema, como resolver?
Ela não é alta nem baixa, é do tamanho da despesa. Quem faz a carga tributária é a despesa. E a despesa é a opção de gasto ditada pelo povo. Queremos determinadas seguranças e benefícios, mas isso custa dinheiro. Não há como combinar carga tributária pequena com despesa grande. Se é possível diminuir os gastos, dá para cogitar reduzir a carga. Fora disso, nem pensar. O problema é que toda despesa tem dono. Você vai cortar em um lugar e dizem: "aqui não, vai cortar no outro". Todo corte é uma guerra.
E o nosso nível de despesas é alto?
É alto. E os maiores gastos são Previdência, Previdência e Previdência. Só em 2018 foram R$ 190 bilhões [de déficit]. Se não resolvermos isso, esquece, não há saída. Depois da Previdência, aí há mil coisas que dá para fazer. As privatizações, por exemplo, podem dar uma boa injeção na economia. Há também muitos gastos perdulários, como no Legislativo e no Judiciário. Não são relevantes como a Previdência, mas, se são desnecessários, devem ser cortados, por uma questão de ética.
O aumento de desonerações, principalmente depois da crise de 2009, foi um dos fatores que aprofundaram o rombo das contas públicas nos últimos anos. Cortá-las é um caminho para reequilibrar arrecadação e despesa?
Não se deve fazer um juízo precipitado. Há situações que envolvem isenções erradas? Sim, claro. Mas eu teria que olhar uma por uma para dizer o que é necessário e o que não. Você pode tirar uma desoneração e matar o negócio. Aí não há empresa, não há emprego, e o governo acaba sem dinheiro.
Uma das principais críticas ao sistema tributário brasileiro é que ele tributa muito o consumo e pouco a renda, o que faz com que seja regressivo. Os pobres acabam pagando proporcionalmente mais impostos do que os ricos. Como isso pode ser melhorado?
Por que é regressivo? Não há nenhum estudo sério sobre isso. Isso é uma coisa simplista, de manual antigo. Não há nada que defina que tributar mais a renda do que o consumo seja melhor. Os pobres estão sendo mais tributados? Então se debruce sobre o problema de maneira objetiva e o decomponha, mas não é porque é consumo ou renda que é assim.
Não há maneiras de melhorar essa regressividade no sistema?
Tributo foi feito para arrecadar, mas pode ser usado para outras finalidades também, como distribuir renda ou estimular uma atividade. É necessário, porém, ter bom senso, se não se produz o efeito contrário. Foi o que aconteceu na França, quando o presidente François Hollande aumentou demais o imposto sobre fortunas. Os franceses foram embora. [O ator] Gérard Depardieu mudou para a Bélgica para não pagar imposto. No campo tributário, as coisas pequenas tendem a incomodar pouco e perdurar, enquanto que, se o governo aumenta demais, o contribuinte acha um jeito de driblar.
O ministro da Economia, Paulo Guedes chegou a sugerir o retorno de um imposto como a CPMF, que cobrava 0,38% sobre transações financeiras. É um exemplo de imposto pequeno e que poderia voltar, dado o rombo nas contas do governo?
Acho que sim. É um tributo barato, com sonegação quase zero, e sua receita permitiria cortar alguma outra tributação. Uma pessoa que ganha R$ 10 mil gastaria no máximo R$ 38 por mês com ela. É menos do que um estacionamento. Mas, de novo, é preciso ter cuidado com o tamanho. O limite entre o veneno e o remédio é a dose.
Um exemplo recorrente da baixa tributação na renda e nos ricos é o fato de o Brasil ser um dos poucos países que não tributa dividendos. Essa isenção foi dada durante a gestão do senhor. O atual governo já falou da possibilidade de retirá-la. É hora de revê-la?
Eu pergunto: para quê? O que o dono de uma empresa paga de imposto é a soma do que é tributado no lucro dentro da empresa, na pessoa jurídica, e do que é tributado no dividendo, que é a parte do lucro distribuída para ele, pessoa física. O imposto total pode ser cobrado apenas na empresa, apenas nos dividendos, ou um pouco nos dois. Se só subir a cobrança nos dividendos, estou aumentando a carga tributária. Para isso não acontecer, será necessário reduzir a parte da empresa, aí é o mesmo que não fazer nada. Para o sócio, vai ficar igual.
É melhor manter os dividendos isentos?
Não tenho a menor dúvida. Evita uma praga fiscal que só não existe no Brasil: a distribuição disfarçada dos lucros. Se eu, sócio, serei tributado no meu dividendo, então eu não distribuo o lucro e o deixo na empresa, para pagar menos imposto. Aí, em vez de comprar carro, casa, avião para mim, eu compro no nome da empresa e uso. É um tipo de sonegação dificílima de combater. Quando nós mudamos isso, a arrecadação subiu, sem precisar subir alíquota --pelo contrário, nós baixamos. O patrimônio apareceu.
Uma proposta recorrente hoje, e também debatida pelo governo, é a criação de um imposto único, ao modelo do IVA em outros países. Ajudaria a simplificar as dificuldades de processo e burocracia que o senhor mencionou?
É puro simplismo, uma confusão. Vai juntar Imposto de Renda à CSLL [Contribuição Social sobre o Lucro Líquido]? PIS e Cofins? Para que, se são iguais? Só vai abrir um conflito com estados, municípios e políticas sociais, e de graça. O CSLL, por exemplo, vai para seguridade social, enquanto o Imposto de Renda vai para estados e municípios. É um computador que imprime isso tudo, o tempo a ganhar seriam algumas frações de segundos.
Outra proposta sugerida pelo governo foi de reduzir o imposto de renda do atual teto de cobrança de 27,5% para até 20%. Como o senhor avalia?
De novo, eu pergunto: para quê? Estudaram a repercussão? Mediram as consequências? E, sobretudo, que problema querem resolver? Se não souberem, então essa coisa não existe. Cria-se uma solução como remédio para tudo antes de saber qual é o problema. Paga muito imposto? Então diminui a despesa. Não há fórmula mágica.
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