Privatizar rios e cobrar pedágio faz parte de projeto avaliado pelo governo
Técnicos do Ministério da Infraestrutura trabalham em um projeto que incentiva a navegação pelos rios. No ano passado, a informação era de que a proposta ficaria pronta no início de 2021. Mas o projeto BR dos Rios ainda não foi apresentado e está na fase de análises e conversas com o mercado, segundo o ministério. Uma das alternativas avaliadas é a privatização de rios navegáveis e a cobrança de pedágios nas hidrovias.
A navegação pelos rios é importante porque pode reduzir o custo de fretes em relação a caminhões e trens e baratear produtos para o consumidor final, dizem especialistas. Mas é preciso construir uma infraestrutura cara. Representantes de caminhoneiros dizem que vão se opor ao projeto se tirar trabalho deles.
O BR dos Rios é considerado uma sequência do BR do Mar, projeto que busca incentivar a navegação de cabotagem (feita no mar, entre portos) e que ainda não foi aprovado no Congresso. O BR do Mar é alvo de críticas dos caminhoneiros. A categoria afirma que, dependendo de como for apresentado, o BR dos Rios também pode gerar tensões.
O texto tem que ser construído de maneira conjunta, com os segmentos [da economia], o Ministério da Infraestrutura e o Parlamento, levando em conta estudos de impacto social e econômico. Nós vamos acompanhar e, se houver sinalização de que a categoria será prejudicada [pelo BR dos Rios], com certeza haverá resistência.
Wallace Landim, o Chorão, presidente da Abrava (Associação Brasileira dos Veículos de Automotores)
Projeto pode incluir pedágio nos rios
De acordo com representantes do setor de logística e transporte, a proposta do governo ainda está incipiente. Mas integrantes do próprio Ministério da Infraestrutura já admitiram que o projeto pode envolver a concessão de alguns rios ao setor privado, o que abriria espaço para que as hidrovias fossem pedagiadas.
No BR dos Rios, a atenção está em como vamos atrair investimentos para expandir o uso das hidrovias. Pode ser via concessão, PPP [Parceria Público-Privada]. Cada caso provavelmente será um caso.
Dino Batista, diretor do Departamento de Navegação e Hidrovias do Ministério da Infraestrutura, à Folha de S.Paulo
Raimundo Holanda, presidente da Fenavega (Federação Nacional das Empresas de Navegação Aquaviária), afirma que a navegação de rios no Brasil "precisa mudar" porque há muita burocracia e poucos investimentos, mas que a real intenção do governo é "privatizar" os rios.
Nós não temos hidrovias, temos rios navegáveis que precisam de muita infraestrutura. Mas os investimentos não vão sair de uma hora para outra, não é como recapear uma rodovia. A verdadeira intenção do governo é privatizar nossos rios, cobrar pedágio.
Raimundo Holanda
O UOL procurou o Ministério da Infraestrutura questionando se o projeto incluirá a cobrança de pedágio nos rios. O órgão respondeu que "o programa BR dos Rios ainda está em fase de planejamento", e que "não há, no momento, qualquer tratativa definida sobre o assunto".
'Pode vir uma porcaria', diz presidente da CNT
Segundo Vander Costa, presidente da CNT (Confederação Nacional do Transporte), ainda falta detalhamento sobre o que de fato o governo quer propor no BR dos Rios.
Pode ser uma coisa excelente para o Brasil, mas também pode vir uma porcaria, que acaba com o nosso sistema. É por isso que o diálogo com todas as partes é fundamental.
Vander Costa
O presidente da CNT cita várias questões que precisam ser consideradas pelo ministério, como quem irá patrulhar os rios, de onde virá o dinheiro para os investimentos, quais serão os impactos ambientais e se o mercado será, ou não, aberto para embarcações do exterior.
Na região amazônica, a indústria naval emprega milhares de brasileiros. É correto abrir o mercado para as embarcações usadas dos EUA? O mercado não é contra importar embarcações novas, mas sim contra trazer sucata. Lá [nos EUA] há uma indústria de navegação desenvolvida, e as embarcações só podem ser usadas por até 20 anos. Depois vão jogar o lixo aqui?
Vander Costa
Por que os rios brasileiros precisam de tantos investimentos?
Um estudo publicado em 2019 pela CNT aponta que o Brasil tem 63 mil quilômetros de vias navegáveis, mas que só 30,9% são utilizados comercialmente. Ainda segundo o estudo, apenas 5% da movimentação de cargas em território nacional ocorre por meio de rios. O documento aponta que a baixa utilização se deve a "entraves de infraestrutura, de operação, de gestão e burocráticos".
O investimento teria de ser alto. Segundo o Plano CNT de Transporte e Logística 2018 (o mais recente), o gasto mínimo necessário para a navegação interior no Brasil era, à época, de R$ 166,4 bilhões, para 367 projetos.
A necessidade de investimentos ocorre porque um rio navegável não é, necessariamente, uma hidrovia.
Os rios navegáveis têm condições naturais que permitem a sua utilização para o transporte. Para que se tornem hidrovias, eles passam por melhorias, como dragagem, construção de estruturas para conter as margens e sinalização. No caso brasileiro, há rotas que esbarram em usinas hidrelétricas, o que demanda a construção de eclusas (uma estrutura que permite que os barcos passem o desnível das barragens).
Em um rio navegável dá para colocar um barquinho. Quando a gente fala de transporte de cargas, estamos pensando em milhares de toneladas de peso. Por isso tem que fazer essas obras.
Lauro Valdivia, da NTC&Logística (Associação Nacional do Transporte de Cargas e Logística)
O que poderia ser transportado pelos rios?
Segundo Valdivia, os investimentos em hidrovias são de longo prazo, "com foco em 50 anos, não em cinco".
Ele explica que o país precisa desse tipo de investimento porque produz muitas cargas volumosas, como safras agrícolas e minério, que, idealmente, seriam transportadas pelos rios e pelas ferrovias.
O transporte por rios também é mais barato: segundo o estudo da CNT, de 2019, o frete hidroviário é 60% mais em conta que o rodoviário; na comparação com o ferroviário, o custo é 30% menor.
Ainda de acordo com o documento, um comboio de quatro barcaças (os barcos utilizados para o transporte em rios) consegue transportar o equivalente a 172 carretas. Por isso, para que seja competitivo, o transporte via rios deve ser feito para distâncias maiores e com cargas em grande quantidade.
O Brasil tem volumes grandes que precisam ser escoados. Levar esse tipo de carga em caminhão é uma ignorância. A vocação do caminhão é fazer rotas de 500 ou 600 quilômetros, de um dia. Isso é o ideal, não a longa distância.
Lauro Valdivia
Ainda de acordo com Valdivia, hidrovias poderiam ser utilizadas, por exemplo, para levar grãos produzidos no Centro-Oeste para portos na Amazônia e, de lá, para o litoral, rumo a outros países.
E há rotas internas também. O governo precisa estudar e ver aquelas que demandam menos investimentos, para começar por essas.
Lauro Valdivia
*Colaborou Carla Araújo, colunista do UOL em Brasília.
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