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Celular, estradas, aeroportos: privatização melhora serviços? E o preço?

Giulia Fontes

Do UOL, em São Paulo

27/09/2021 04h00Atualizada em 27/09/2021 10h10

A aprovação do projeto que permite que o governo privatize a Eletrobras e a discussão sobre a venda dos Correios têm gerado debates sobre o impacto das privatizações para o consumidor. Nos casos dessas empresas, quem é contra a venda alega efeitos negativos como o aumento da conta de luz e a falta de cobertura para áreas distantes na entrega de encomendas. Quem é a favor defende que o serviço será mais eficiente e que haverá menos perdas com corrupção.

O Brasil tem um histórico de empresas privatizadas, o que permite olhar para trás para tirar lições dessas experiências. Dois fatores são fundamentais para que haja benefícios ao consumidor, segundo especialistas. As condições de venda precisam ser bem definidas após um debate amplo e, depois da privatização, as agências reguladoras devem atuar de forma intensa para garantir o bom funcionamento dos serviços.

Relembre abaixo alguns casos importantes de empresas privatizadas e veja quais foram os efeitos para o consumidor.

Telefonia: acesso amplo e reclamações

O caso do sistema Telebras é um dos mais relevantes no histórico recente de privatizações no Brasil. Em julho de 1998, no governo Fernando Henrique Cardoso, o governo federal vendeu empresas responsáveis por telefonia fixa, de longa distância, e celular, arrecadando R$ 22 bilhões em valores da época (corresponde a R$ 88,1 bilhões hoje).

O principal ponto positivo da venda dessas estatais foi a expansão da oferta dos serviços de telecomunicações no país, barateando o acesso, de acordo com Marco Berberi, advogado e doutor em direito pela UFPR (Universidade Federal do Paraná). Mas também houve problemas.

Naquela época, o sistema de telefonia até funcionava bem, mas era de difícil acesso. Hoje há um acesso muito mais amplo, ficou tudo mais simples e fácil [depois da privatização]. De outro lado, há muitas reclamações, não só pela qualidade da prestação do serviço, mas pela forma como se trata o usuário.
Marco Berberi, da UFPR

Os serviços de telefonia celular são um dos campeões de reclamações no país, atrás dos bancos, segundo dados do Sistema Nacional de Informações de Defesa do Consumidor, do governo federal. Em 2021, o sistema já registrou 124.097 queixas relacionadas a essas empresas, a maior parte (54.158), por cobranças consideradas indevidas ou abusivas.

Procurada pelo UOL, a Conexis Brasil, sindicato que reúne as empresas de telefonia, disse que, desde a privatização, o setor de telecomunicações já investiu mais de R$ 1 trilhão em valores atualizados pela inflação. "Os altos investimentos têm se refletido em queda no número de reclamações", afirmou.

Light foi vendida antes da criação da Aneel

Há exemplos de privatizações de companhias do setor elétrico. Empresas como a Light, do Rio de Janeiro, fizeram parte do pacote de privatizações do final dos anos 1990 e início dos anos 2000, também no governo FHC.

A venda da Light aconteceu por meio de um leilão na Bolsa de Valores, em maio de 1996. Hoje, 20% das ações da empresa pertencem ao fundo Samambaia, 10% são de um fundo do Santander e o restante está pulverizado entre outros acionistas.

Fernando Filardi, professor do Ibmec-RJ, diz que o processo de privatização da Light "foi mal feito", porque a venda das ações aconteceu antes da criação da agência reguladora do setor, a Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica), em dezembro de 1997.

No primeiro ano [depois da privatização], foi como se não houvesse nenhuma fiscalização. Isso foi muito ruim, porque não havia nenhum tipo de controle dos indicadores de desempenho, principalmente ligados ao consumidor.
Fernando Filardi, professor do Ibmec-RJ

Filardi afirma que a criação da Aneel foi fundamental para melhorar o desempenho da companhia, mas persistem reclamações sobre interrupções no fornecimento de energia.

A Light ocupa a 22ª posição, dentre 29 empresas, no ranking de desempenho de continuidade da Aneel, que mede a duração e a frequência das interrupções no fornecimento de energia.

O problema que ainda temos é que a agência reguladora não tem força para fazer valer suas diretrizes. As multas, por exemplo, ficam se arrastando por décadas. No caso da Light, a duração e a frequência das quedas de luz ainda ocorrem em níveis inaceitáveis para uma companhia privatizada.
Fernando Filardi

O UOL procurou a Light e a Aneel, mas a empresa e a agência não quiseram se manifestar.

Rodovias: corrupção e pedágio alto

O governo também faz concessões, casos em que o Estado não "vende" uma empresa ou serviço, mas transfere seu gerenciamento ao setor privado por tempo determinado.

As concessões mais conhecidas são as de rodovias, e os exemplos nessa área "são muito heterogêneos", segundo Joelson Sampaio, professor da escola de economia da FGV (Fundação Getúlio Vargas). "Há rodovias em que o serviço ficou melhor, mas a um custo muito maior", diz.

No Paraná, por exemplo, na praça de pedágio mais cara do estado, em Jataizinho (a 400 quilômetros de Curitiba), a tarifa é de R$ 26,40 para carros.

Também são comuns os casos de corrupção envolvendo concessionárias de rodovias.

Em São Paulo, por exemplo, a Ecovias, que administra o sistema Anchieta-Imigrantes, firmou um acordo com o Ministério Público Estadual reconhecendo que contratos de concessão assinados pelo governo estadual nas gestões de Mário Covas, Geraldo Alckmin e José Serra, todos do PSDB, foram fraudados pela ação de um cartel.

Pelo acordo, a companhia se comprometeu a devolver R$ 650 milhões ao estado. À época, a Ecovias divulgou um fato relevante ao mercado, dizendo que tem "compromisso com a integridade". O governo do estado afirmou que participou do acordo para "definir a destinação dos recursos em obras de interesse público".

Procurada pelo UOL para comentar a reportagem, a Ecovias não quis se pronunciar.

No Paraná, o ex-governador Beto Richa (PSDB) chegou a ser preso em uma investigação sobre a concessão de rodovias federais. Na ocasião, o tucano afirmou que a prisão foi baseada em "ilações e fatos carentes de comprovação". Richa foi solto logo depois, e processos sobre o caso continuam tramitando na Justiça Eleitoral.

Aeroportos têm mais investimentos, diz professor do ITA

Concessões de aeroportos fornecem mais exemplos positivos, de acordo com Alessandro de Oliveira, economista, especialista em aviação e coordenador do Núcleo de Economia do Transporte Aéreo do ITA (Instituto Tecnológico de Aeronáutica).

Fortaleza, Porto Alegre, Recife e Guarulhos (SP), por exemplo, têm aeroportos que estão se beneficiando muito da nova gestão e dos investimentos.
Alessandro de Oliveira, do ITA

O leilão de concessão do aeroporto de Guarulhos ocorreu em 2012, na gestão de Dilma Rousseff (PT). Já os aeroportos de Fortaleza e Porto Alegre foram concedidos em 2017, no governo Michel Temer (MDB). No caso do aeroporto de Recife, o processo ocorreu já no governo Bolsonaro, em 2019.

O professor cita, porém, um caso problemático, o do Aeroporto de Viracopos, em Campinas. Ele foi concedido à iniciativa privada na gestão Dilma. Seis anos depois, a concessionária Aeroportos Brasil, que administrava a estrutura, entrou em recuperação judicial. Segundo Oliveira, isso atrasou os investimentos, mas não afetou as tarifas porque, "quando um aeroporto tem performance ruim, ele é penalizado e não pode ficar mais caro".

O processo de recuperação judicial acabou em dezembro de 2020. Agora, a previsão do governo federal é de que o aeroporto seja licitado de novo no primeiro semestre de 2022, e que a concessão vá para outra empresa. Segundo o Ministério da Infraestrutura, o edital prevê investimentos de R$ 4,2 bilhões.

A Anac [Agência Nacional de Aviação Civil] é quem deve fiscalizar a boa qualidade do serviço. Em tese, se a regulação for adequada, o aeroporto vai ter um ente privado atendendo melhor o serviço e fazendo investimentos que o setor público não tinha condições de realizar.
Alessandro de Oliveira, do ITA

O professor do ITA diz que a regulação da Anac tem bons regulamentos, considerando fatores como produtividade e qualidade. Mas, segundo ele, o governo poderia uniformizar os contratos de concessão, estabelecendo incentivos padronizados.

Foco deve ser o consumidor, e não arrecadar dinheiro

Berberi afirma que não é possível "demonizar ou louvar" as privatizações de forma geral, já que há aspectos positivos e negativos na venda de diversas estatais.

O fundamental, diz, é que os processos sejam amplamente discutidos, com estudos sobre seus impactos e arranjos que beneficiem o consumidor. Depois da venda, é crucial que o setor tenha uma agência reguladora estatal forte, que faça a mediação entre o cidadão e as empresas, afirma.

Muitas vezes, quando se fala de privatização, há muita pressa para aumentar o caixa do governo, mas é preciso sempre pensar no modelo e no destinatário final do serviço, que são os cidadãos. O único objetivo deve ser a melhora da prestação do serviço. Se houver outro objetivo, há um desvio na finalidade.
Marco Berberi, da UFPR

Sampaio afirma que, no geral, há melhoria dos serviços, mas com aumento de preço.

O grande desafio das privatizações é o desenho: o que a empresa privada vai ter de oferecer para manter a qualidade do serviço junto ao público a um preço justo.
Joelson Sampaio, da FGV

Carlos Lopes Rodrigues, professor de economia na Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e do Mucuri, em Minas Gerais, diz que é fundamental relembrar exemplos anteriores para "não repetir os erros do passado". Ele critica, por exemplo, o fato de o governo ter feito grandes investimentos na Telebras antes de privatizá-la.

Se o governo faz esse saneamento financeiro e a empresa passa a ser lucrativa, por que passá-la para a iniciativa privada?
Carlos Lopes Rodrigues, da UFVJM