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Carlos Juliano Barros

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Bilionários vão ao espaço, e pobres nem podem buscar trabalho em outro país

Jeff Bezos é fundador da Blue Origin, uma empresa espacial que concorre com a SpaceX, do também bilionário Elon Musk - Divulgação
Jeff Bezos é fundador da Blue Origin, uma empresa espacial que concorre com a SpaceX, do também bilionário Elon Musk Imagem: Divulgação

20/07/2021 04h00

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Nesta terça-feira, Jeff Bezos - fundador da Amazon e pessoa mais rica do mundo, com fortuna na casa dos US$ 200 bilhões - finalmente embarcou rumo ao espaço sideral. Com mais três tripulantes, ele voou sobre o deserto do Texas a bordo do foguete New Shepard, empreendimento espacial de sua empresa Blue Origin, e retornou à Terra.

A viagem acontece dez dias após outro ricaço, Richard Branson, curtir uma excursão para fora da Terra a bordo de um foguete desenvolvido por sua empresa, a Virgin Galactic.

A nova corrida espacial do século XXI vem embalada em uma aura de turismo ultra-vip para um destino mais do que exclusivo. Por sinal, já há um seletíssimo clube contando os dias para torrar milhões em reservas nas próximas naves.

É bastante representativo que Branson e Bezos consigam vazar do planeta em meio a uma pandemia que, além de ceifar milhões de vidas humanas, aprofundou a já astronômica desigualdade de renda global. Segundo o Índice de Bilionários da Bloomberg, o patrimônio dos 500 mais abonados do mundo aumentou em US$ 1,8 trilhão ao longo de 2020 - um salto de 31% em comparação ao ano anterior.

Enquanto isso, na Terra, mais fronteiras para imigrantes

Nestes tempos em que bilionários varam o ar para contemplar a Terra à distância, governos de países desenvolvidos têm apertado o cerco contra imigrantes - o povo que se arrisca por terra e mar para tentar ganhar a vida em outro país.

França e Alemanha, para citar os exemplos de duas nações acostumadas a receber um grande fluxo de pessoas à procura de trabalho, vêm endurecendo nos últimos anos suas políticas de controle de estrangeiros.

Mas o principal símbolo desse movimento era, sem dúvida, o muro prometido por Donald Trump na fronteira dos Estados Unidos com o México. Mesmo que o paredão não tenha sido efetivamente construído, a política migratória do governo norteamericano nem de longe abriu os braços a quem vem de fora, como havia sinalizado o presidente Joe Biden.

A mensagem é sutil e, ao mesmo tempo, contundente: os donos do dinheiro grosso já não estão limitados nem mesmo às dimensões de seu planeta. Já à imensa maioria em busca de trabalho resta uma perspectiva de imobilismo, na melhor das hipóteses.

Pensar no espaço sideral como camarote exclusivíssimo talvez seja a metáfora mais bem acabada da concentração de renda sem precedentes em que a humanidade foi aprisionada.

Crescimento na Guerra Fria

Mas nem sempre foi assim.

A atual corrida espacial acontece em um contexto bastante diferente daquele da primeira onda, durante a Guerra Fria, quando Estados Unidos e União Soviética competiam cabeça a cabeça para desbravar a galáxia. Apesar de guardarem pouco tempo de distância uma da outra, essas duas eras têm enormes diferenças de "projeto".

As três décadas que se seguiram à Segunda Guerra Mundial foram marcadas por um crescimento impressionante das economias centrais - aquelas que, querendo ou não, servem de referência.

Época de pleno emprego, sindicatos fortes e de um Estado de Bem Estar Social inclusivo, esse período conhecido na Europa como "Os 30 Gloriosos" talvez tenha sido, mesmo com todos os seus problemas, o de maior justiça social da história. É o que nos ensina o economista francês Thomas Piketty.

A primeira corrida espacial significava o suprassumo da modernização. É claro que nela estavam embutidos uma série de riscos - o maior deles, certamente, o de uma Terceira Guerra Mundial. Mas o que interessa aqui é que o salto tecnológico patrocinado por Estados fortes tinha um nítido compromisso público: promover a qualidade de vida de toda a sociedade. Os ganhos obtidos com a conquista do espaço eram pensados em termos coletivos.

Corrida espacial vira briga de bilionários

Pula para 2021.

É sintomático que Jeff Bezos tenha tirado onda com Richard Branson pelo fato de o dono da Virgin Galatic não ter ultrapassado a Linha do Kármán, a marca de 100 quilômetros de altitude que, segundo padrões internacionais, abre as portas de fato para o espaço sideral. Ou que a Blue Origin de Bezos corra para largar na frente da SpaceX de Elon Musk, outro bilionário que vem se aventurando nesse mercado.

A atual corrida espacial soa mais como disputa de egos para imprimir bonito na capa da Forbes do que como utopia em nome do bem comum - preocupação, definitivamente, fora de moda.

É claro que podemos nos deixar levar pelo conto de que as inovações trazidas por Bezos e companhia limitada vão, em algum momento, respingar para toda a sociedade. Talvez os serviços de e-commerce da Amazon fiquem ainda mais rápidos e eficazes. Quem sabe novas ocupações de qualidade duvidosa possam ser criadas para estocar e entregar mercadorias vendidas pela big tech.

No fim das contas, tudo isso diz muito sobre o papel reservado à esmagadora maioria que vive do trabalho e que nem em seus sonhos mais coloridos pode se dar ao luxo de comprar um pacote de férias siderais. Na verdade, sequer consegue aventar a possibilidade de migrar de país - ou mesmo de região - para caçar um ganha-pão, sem enfrentar toda sorte de percalços.

No ensaio "Ordens locais, caos global", o sociólogo polonês Zygmunt Bauman afirma que "o grau de imobilização é hoje a principal medida de privação social e a principal dimensão da falta de liberdade". Em outras palavras, mover-se ao seu bel-prazer pelo mundo (e até mesmo pelo espaço!) tende a ser tornar um privilégio cada vez mais restrito. Salve-se quem merecer.