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Carlos Juliano Barros

REPORTAGEM

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

'Desafio é reindustrializar o país, mas sem olhar para o passado',

07/12/2021 04h00

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O gaúcho Felipe Augusto Machado tem conseguido uma proeza nas redes sociais: pautar o debate sobre a necessidade de reindustrializar o Brasil.

O assunto é escanteado há tempos por uma banda de economistas que tem bastante influência no debate público, mas que não enxerga com bons olhos políticas industriais planejadas pelo Estado para gerar renda e emprego.

Machado vai na contramão. "É difícil imaginar que é possível um país se desenvolver sem passar por uma indústria robusta", analisa.

Servidor federal, Machado é mestre pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Em sua pesquisa, ele estudou o papel do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) como indutor da indústria a partir de 2004.

A conclusão é de que os investimentos perderam o foco ao fomentar setores de baixa complexidade, nos quais o Brasil já era competitivo. O exemplo mais notório é o do frigorífico JBS, um dos famigerados "campeões nacionais".

Para Machado, o desafio é reindustrializar o Brasil sem olhar pelo retrovisor, apostando em segmentos de vanguarda. É o caso da produção de energia por meio das chamadas "tecnologias verdes", em que o país inclusive já tem tradição.

Confira a íntegra da entrevista.

O Brasil já teve uma indústria relativamente pujante. Mas há algumas décadas vem deixando as políticas industriais em segundo plano. Por que isso ocorreu?

Aconteceu uma série de coisas que contribuíram para isso. O Brasil na década de 1980 entra numa crise, passa pela chamada "década perdida". Ao mesmo tempo, a gente tem os governos da Margaret Thatcher e do Ronald Reagan que estreiam o que se chama de neoliberalismo. E, no início da década de 90, tem o desmantelamento da União Soviética. Isso tudo acaba gerando um certo consenso de que o Estado não deveria intervir na economia e que os mercados deveriam agir de forma desregulada. Isso traz impactos de longo prazo para vários países, não só para o Brasil. Acho que um dos principais é a ascensão de um grupo social que antes não tinha tanta influência assim - que é o grupo ligado ao mercado financeiro. Por que isso preocupa sob o ponto de vista do desenvolvimento econômico? É porque economistas e analistas como eu entendem que o aprendizado tecnológico e a inovação são fundamentais para o desenvolvimento sustentável de renda. E isso leva tempo. Mercados financeiros desregulados não são um instrumento adequado para o investimento de longo prazo. Eles estão focados nos ganhos de curto prazo. Então, no Brasil, nos últimos 40 anos, a gente vê uma deterioração da indústria muito clara, que a gente chama de desindustrialização precoce.

Alguns economistas consideram um mito a ideia de que só a indústria gera bons empregos e proporciona desenvolvimento. Como o senhor enxerga essa avaliação?

Eu não diria que só a indústria gera bons empregos e proporciona desenvolvimento. Mas a questão é o contrário. É difícil imaginar que é possível um país se desenvolver sem passar por uma indústria robusta. Falo isso olhando para os últimos 100 anos - ou desde o início da revolução industrial. Os [casos] realmente representativos, especialmente aqueles do leste asiático, são os mais impressionantes. Quando a gente estuda a história, fica muito claro que eles tiveram como prioridade o desenvolvimento industrial. Isso decorre da percepção de que a indústria é diferente em termos de gerar renda. Por exemplo: as cadeias de produção são muito longas. Então, para produzir um carro, eu preciso de milhares de autopeças que, por sua vez, têm sua própria cadeia de fornecimento. Então, gera muito emprego. Outra coisa muito importante da indústria é que ela é mais propícia à automação. Isso acaba levando a um aumento de produtividade e viabiliza o aumento de salários. Isso não quer dizer que a gente não possa ver processos de desenvolvimento liderados por outros setores. Mas eu sou cético em relação a isso. Sempre dizem que a Apple focou nos Estados Unidos serviços sofisticados, como design e engenharia. Mas mesmo eles dependem da indústria para que tenham valor adicionado.

Não à toa um dos grandes motores da ascensão de Donald Trump foi a promessa de reindustrializar o país. O atual presidente, Joe Biden, também é sensível a esse apelo.

Exatamente. Quando a gente olha Google, Facebook, Amazon, são empresas de um valor sem precedentes, que investem pesadamente em inovação e pagam salários enormes para seus funcionários. É normal gestores públicos olharem para o Vale do Silício e tentarem imitar. Só que eles [os norteamericanos] estão percebendo que esse modelo pode ter várias limitações para levar um país ao desenvolvimento. Estão percebendo, primeiro, que não gera tanto emprego assim. E é extremamente concentrador de renda. Se a gente olhar a viabilidade financeira dessas empresas, a maioria delas nem mesmo se mostra viável depois de muito tempo. A Uber registrou o primeiro trimestre de lucro agora, depois de mais de dez anos de operação. E é a Uber! Isso sem falar, claro, em toda a discussão envolvendo o poder de mercado, privacidade dos dados.

Os governos do PT até ensaiaram uma retomada da política industrial, mas acabaram privilegiando setores de baixa complexidade. Apelidada de "política dos campeões nacionais", a estratégia se notabilizou, dentre outras coisas, por investimentos bilionários do BNDES em setores como carne, celulose e afins. Quais foram os problemas dessa política?

Muita gente coloca nesse debate que o problema está em criar campeões nacionais. Eu queria deixar bem claro que criar campeões nacionais foi um objetivo também para todos esses países que deram certo - Japão, Coreia do Sul, Taiwan - porque isso traz escala e faturamento. E esse faturamento pode ser investido em mais pesquisa e desenvolvimento, em mais bons empregos. A Hyundai era uma empresa de construção civil, uma Odebrecht da vida. E ela recebeu incentivo para avançar sobre outros setores que eram considerados prioritários pelo governo. Por exemplo: a construção naval, em que até hoje ela é muito forte, e também o setor automobilístico. Quando a gente olha para essas políticas de campeões nacionais do Brasil, a intenção era - dentro do core business das empresas, por exemplo, a JBS - que elas dominassem os seus próprios mercados. Mas naqueles segmentos em que já eram competitivas. Qual é o sentido de uma política industrial que investe em atividades em que o Brasil já é competitivo? E ainda mais em setores de baixa complexidade que tem essa capacidade de gerar bons empregos muito mais reduzida. Isso foi um erro grave.

Mas houve também medidas mais arrojadas, como o Programa de Incentivo às Fontes Alternativas de Energia Elétrica (Proinfa), que aumentou consideravelmente a indústria da energia eólica no país, por exemplo.

Você tem toda razão. E isso só mostra a complexidade das políticas industriais. Ao mesmo tempo que a gente tem essa política de campeões nacionais, de fazer com que uma JBS se tornasse totalmente dominante no mercado de proteína animal, a gente teve também ações relacionadas ao meio ambiente e a energias alternativas. Aliás, essa é uma das críticas: não teve muito foco. Se a gente olhar de maneira geral, parece que o Brasil incentivou todos os setores. Sem foco é muito difícil fazer política industrial.

Como você vê esse contexto de desemprego, avanço da informalidade no país e os desafios para os próximos anos?

Quando a nossa economia se torna cada vez menos complexa, como a gente vê nas últimas décadas, isso tem impacto sobre esses indicadores. O desafio principal na minha opinião é realmente tentar reindustrializar o país. Mas não é reindustrializar pensando no passado. A gente não conseguiu entrar na terceira revolução industrial, da microeletrônica, e está tentando entrar na quarta revolução industrial [da inteligência artificial].

A gente acabou de falar sobre essa mudança de paradigma internacional em relação à energia verde. O Brasil, em tese, poderia estar bem posicionado para entrar nesse novo paradigma. O litoral é extenso, o que é bom para a energia eólica. O território tem uma insolação relevante para fins de energia solar. A gente tem reservas importantes de matérias-primas que são fundamentais para para essa essas tecnologias verdes - as chamadas terras raras. Então, o Brasil tem condições de avançar nessas tecnologias e não pode perder tempo.