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"Bodes na sala" da PEC emergencial expõem intenção de passar boiada
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Alguém toparia trocar sua casa para garantir o prato de comida do almoço, num período restrito, digamos, quatro meses? Quem estivesse de posse de um mínimo de sanidade mental certamente responderia "não", "nunca". Pois foi exatamente algo assim que o governo Bolsonaro, sob a condução do ministro da Economia, Paulo Guedes, quis que o Congresso Nacional aprovasse - e a toque de caixa.
Vincular um benefício temporário a mudanças em regras constitucionais permanentes parece coisa sem sentido - e é. Felizmente, os senadores, aos quais cabe avaliar primeiro a PEC (Proposta de Emenda Constitucional) Emergencial, cuja aprovação o governo condicionou à concessão de um auxílio realmente emergencial, mas restrito no tempo e no alcance de beneficiados, impuseram um primeiro freio à pretensão evidentemente absurda.
A votação, antes prevista para esta quinta-feira (25), foi adiada em princípio para a semana que vem, e a PEC, de acordo com informações que circulam no Congresso, deverá chegar à votação bastante desidratada. Há até um movimento, que abrange não apenas senadores oposicionistas, para votar o auxílio emergencial sem condicionantes, empurrando as muitas propostas de revisão de regras fiscais contidas na PEC para um outro momento.
Guedes quer atrelar a concessão de um auxílio emergencial, de R$ 250 mensais, para 30 milhões de cidadãos socialmente vulneráveis, a um custo total em torno de R$ 30 bilhões, por uma ampla revisão constitucional, concentrada em normas fiscais, mas não só. São tantas as alterações propostas que o economista Felipe Salto, diretor-executivo da IFI (Instituição Fiscal Independente), órgão de avaliação das contas públicas vinculado ao Senado Federal, em análise em sua conta no Twitter, precisou montar 15 grupos de propostas de alterações constitucionais, para ficar apenas nas mais importantes.
Essas mudanças vão desde a criação de condicionantes para os direitos sociais expressos no artigo 6º da Constituição até a revogação de dispositivos constitucionais, caso da quebra dos pisos mínimos de recursos para Saúde e Educação. Também pretende introduzir mais uma âncora restritiva de gastos públicos, com a vinculação da condução da política fiscal à trajetória da dívida pública.
Quer ainda regulamentar regras de controle fiscais de estados e municípios, e consolidar gatilhos de cortes de despesas quando determinados limites de despesas forem atingidos. E inclui uma regulamentação, em termos vagos, de "estado de calamidade" (calamidade provocada por fenômenos naturais, de saúde, como na pandemia de covid-19, social, financeira, qual, quais?), transferindo a responsabilidade da decretação para o Congresso, mas, é claro e não podia ser diferente, definida e aplicada, em termos práticos, pelo Executivo.
Trata-se de uma tentativa de revisão constitucional, sem a devida convocação de uma assembleia constituinte. Com pelo menos três agravantes. O primeiro é o condicionar um auxílio de sustentação de cidadãos vulneráveis, de caráter obviamente urgente, a questão que demandariam tempo muito maior para debate e aprovação. Outro é o de acomodar uma lista grande de "contrabandos", sem ligação cabível com o conjunto entregue para análise. O terceiro agravante é o de pretender aprovar tudo isso em prazo recorde.
Estão reunidos na PEC as obsessões de Guedes por impor às contas públicas os seus já famosos "DDD", que resumem o objetivo de desvincular, desobrigar e desindexar despesas públicas amarradas pela Constituição de 1988. São coleções de jabutis que o ministro insiste em pendurar nas árvores das PECs pautadas no Senado ou na Câmara, desvirtuando as razões principais delas.
Classificar a proposta como inaceitável é uma forma elegante de dizer que se trata de uma barbaridade técnica, política e social. Nem por isso, o relator da PEC, senador Marcio Bittar (MDB-AC), barrou seus pontos polêmicos. Com o adiamento da votação e as negociações para desatrelar a renovação do auxílio da revisão constitucional pretendida pelo governo, prevaleceu, ainda bem, um pouco de bom senso.
Tentando tirar alguma lógica de algo tão sem noção, resta a velha hipótese de que o governo apresentou uma proposta coalhada de "bodes na sala", com o intuito de desviar a atenção, sacrificando alguns bois para fazer passar a boiada. São muitos os riscos, numa situação com essa, que combina a necessidade de uma decisão rápida - em razão da urgência em renovar um auxílio de renda a vulneráveis - com a imposição do exame de uma montanha de condicionantes complexas.
Um exemplo relevante, entre muitos, é da condicionante dos direitos sociais, gravados no artigo 6º da Carta de 1988, inserida na PEC. Diz o artigo constitucionais que "são direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados." A PEC busca condicionar esses direitos à existência de um "direito" ao "equilíbrio fiscal intergeracional".
Esse é um conceito bastante abstrato, que já estava presente na PEC do Pacto Federativo e foi importado para o monstrengo jurídico que o governo quis negociar em troca de um auxílio restrito e temporário. O que será de fato um "equilíbrio fiscal intergeracional"? Quem vai determinar o que seja? E a que tempo?
Se o condicionante do "equilíbrio fiscal intergeracional" prevalecer, os direitos sociais deixam de ser direitos, que governos devem atender, para se tornarem concessões que podem ser feitas, caso alguém decida haver recursos para tal. Em bom português, o artigo 6º, que se insere entre os fundamentos básicos da Constituição de 1988, fica, na prática, revogado.
Se esse "boi" passar junto com o que sobrar da boiada que foi enfiada na PEC Emergencial, depois da retirada dos muitos bodes nela pendurados, em vez de o Orçamento se adequar aos direitos sociais, serão os direitos que ficarão dependentes do Orçamento. Uma inversão completa da boa gestão social e do para que serve um governo.
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