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Como nota de R$ 200, conta em dólar tem benefícios, mas favorece criminosos
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Não mereceu a devida atenção a aprovação pelo Senado do projeto de lei do Executivo que altera de forma radical as regras e normas de operação com moeda estrangeira no Brasil. Agora à espera da sanção presidencial, o projeto aprovado, ao estabelecer novo marco legal para o câmbio, abre a possibilidade de abertura de contas bancárias e de aplicação de recursos em moeda estrangeira, para residentes e não-residentes.
O tema merecia mais atenção porque suas repercussões na economia, quando estiver efetivamente valendo, são enormes e graves. Aprovado em votação simbólica - ou seja, dispensada a votação nominal -, na noite de quarta-feira (8), o PL 5387/2019 promete consolidar e atualizar uma legislação dispersa, com regras sobrepostas em camadas, algumas com quase um século de existência.
Chama a atenção a quase inexistência de um debate sobre um tema tão sensível para o conjunto da economia. Aprovado a toque de caixa na Câmara em fevereiro, como parte das primeiras moedas de troca do então novo presidente da Casa, deputado Arthur Lira (PP-AL), com o governo Bolsonaro, em nome do Centrão, o novo marco do câmbio dormiu no Senado até agora, para também ser aprovado sem audiências públicas com especialistas.
É necessário, sem nenhuma dúvida, simplificar e modernizar a legislação cambial. Essa necessidade, porém, não justifica os riscos de potencializar instabilidades e volatilidades a que o projeto aprovado dá ensejo. A abertura prevista na nova legislação ainda precisa ser regulamentada pelo Banco Central, mas é de se prever os catastróficos impactos de uma corrida para os dólares, tanto no caso de uma crise interna quanto pelo contágio de uma crise externa, possibilidade aberta pela nova legislação.
São esses potenciais impactos adversos que deixam claro ter o novo marco da legislação cambial chegado em hora imprópria. Diferentemente do que diz a exposição de motivos do projeto aprovado, a ampla abertura para a criação de contas em moeda estrangeira no país não alinha o arcabouço legal brasileiro ao praticado em países maduros e a recomendações de organismos multilaterais, como o FMI (Fundo Monetário Internacional).
No processo de cura da grande crise global de 2008, os países maduros e as organizações multilaterais concluíram que a abertura financeira entre fronteiras tinha ido longe demais. Intenso debate localizou a alta porosidade das fronteiras financeiras no mundo globalizado como uma das origens do aumento da frequência, amplitude e intensidade das crises globais. A partir dessa avaliação, mudaram o comportamento e as recomendações sobre o tema.
O FMI, por exemplo, nos últimos dez anos, reformulou sua visão sobre os movimentos de liberalização dos fluxos de capitais. Desde 2012 recomenda que a abertura dos fluxos cambiais sejam graduais e em linha com as condições estruturais de cada país. Até mesmo o controle de capitais, antes impensável, é agora aceito, ainda que temporariamente, em períodos de crises agudas.
Outros organismos multilaterais, como Banco Mundial e OCDE, a organização dos países ricos e de alguns emergentes, como Chile e México, estão alinhados com essas diretrizes. Aliás, a ideia de que uma abertura cambial mais radical cumpriria exigências para ingresso na OCDE, argumento contido nas justificativas do novo marco cambial, também carece de fundamentamento. As moedas de Chile e México não são conversíveis.
O sonho da moeda conversível é antigo, principalmente entre liberais brasileiros na economia. Mas é de se perguntar quem, exceto empresas e pessoas que de fato operam no mercado internacional, não pretendendo correr os riscos da especulação, podendo manter seus recursos em dólares, lá fora e mesmo aqui, vai preferir mantê-los em reais, mesmo com todas as garantias da livre circulação de capitais.
Pelo novo marco cambial, as investidas de especuladores, valendo-se da chamada "arbitragem de taxas de câmbio", hoje já permitidas, mas limitadas, ficariam tão mais livres quanto a regulamentação estabelecida pelo Banco Central permitisse. Numa fase de depreciação mais intensa do real ante o dólar, haveria incentivo para uma corrida por empréstimos em reais, com os quais dólares seriam comprados para posterior revenda.
Este é apenas um dos riscos de uma lista extensa. Exposta com indesejável frequência a turbulências, com o novo marco cambial, em resumo, a economia brasileira pode agregar riscos desnecessários de potencializar tais turbulências. Na hora do "vamos ver" das crises econômicas e financeiras, quem vai preferir ficar na chuva com reais a se proteger no telhado dos dólares? Sem restrições legais, agora relaxadas pela nova legislação cambial, o real correria o risco de sofrer desvalorizações de enorme intensidade, pressionando as reservas internacionais acumuladas e mantidas pelo país.
A transferência para o Banco Central da atribuição de regulamentar o grau e o ritmo da abertura do fluxo cambial também causa estranheza. Essa tarefa normalmente caberia ao CMN (Conselho Monetário Nacional), que é o órgão que costuma estabelecer as políticas executadas pelo BC. A independência do BC brasileiro não incluiu, por exemplo, diferentemente do que ocorre com alguns congêneres, a permissão de fixar as metas de inflação, ainda atribuição do CMN, às quais o BC cabe perseguir.
A verdade é que, se uma moeda não funciona como meio de pagamento, unidade de conta e, principalmente, reserva de valor, a não ser por imposição da lei, como ocorre no Brasil, só especuladores, acostumados a correr mais riscos, em busca de maiores ganhos, podem querer acumular seus recursos nessa moeda. A alteração radical prevista no novo marco cambial se parece com a nota de R$ 200. Até agora ela se mostra desnecessária para a grande maioria das pessoas e dos negócios. Facilita, porém, a vida para quem não pode registrar a origem de seus recursos - contrabandistas, traficantes, corruptos, criminosos em geral.
Por ter sempre mantido regras moderadas neste campo, o Brasil escapou do canto da sereia da dolarização, mesmo nas mais agudas crises cambiais e inflacionárias. Ao avançar numa liberalização sem filtros dos fluxos de capital, indo muito além da revisão de regras com o objetivo de simplificar e modernizar o arcabouço cambial brasileiro, o projeto de lei aprovado acaba criando mais riscos do que benefícios à economia do país.
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