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Por que usar dinheiro vivo, como os Bolsonaro, é roteiro clássico de crime
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É fina e frágil a linha que separa o que é legal de ilegalidades na aquisição em dinheiro vivo de bens com valor relativo elevado. Daí a relevância das informações apuradas na reportagem exclusiva do UOL sobre negócios imobiliários do presidente Jair Bolsonaro e de sua família, publicadas nesta terça-feira (30).
A reportagem dos jornalistas Thiago Herdy e Juliana Dal Piva levantou transações imobiliárias de Bolsonaro, filhos, irmãos, ex-esposas e cunhados. Encontrou pelo menos 107 negócios dos quais 51 foram total ou parcialmente realizados em dinheiro vivo. As transações em espécie somaram R$ 13,5 milhões, ou R$ 25,6 milhões em valores atualizados pela variação do IPCA (Índice de Preços ao Consumidor Amplo), calculado pelo IBGE. A atualização é apenas monetária, não em relação à eventual valorização dos imóveis no mercado.
Bolsonaro reagiu com agressividade às revelações da reportagem do UOL. "Qual o problema de comprar com dinheiro vivo algum imóvel", disse, irritado, ao ser indagado sobre as informações levantadas pelo UOL.
Como é sabido — e a própria reportagem do UOL deixa claro —, negociar imóveis com dinheiro vivo, em princípio, não é crime. De início, porém, é algo suspeito. As suspeitas se apresentam porque transações envolvendo volumes de dinheiro em espécie, sem passar pelo sistema financeiro, ainda mais quando as operações de pagamento são cada vez mais realizadas de forma eletrônica, se mostram crescentemente como exceções à regra.
A fronteira entre a legalidade e a ilegalidade é definida pela transparência na informação da origem dos recursos aplicados nas operações. Se a origem do dinheiro é legal e declarada, não há crime. Mesmo não havendo declaração prévia, a ocorrência de crime dependerá do resultado de necessárias investigações fiscais e policiais, conforme determina a legislação em vigor.
Essa legislação decorre da lei 9.613, de 1998, que trata do crime de lavagem ou ocultação de bens e valores. A lei visa à prevenção da utilização do sistema financeiro para "esquentar" recursos obtidos de forma ilícita e determinou a criação do Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras), órgão encarregado de investigar a origem de recursos registrados em contas bancárias.
Em seus quase 25 anos de existência, a lei da lavagem de dinheiro sofreu até agora 15 alterações, oito das quais no governo Bolsonaro, determinadas por leis — ordinárias e complementares —, medidas provisórias e decretos. Um projeto de lei, propondo o endurecimento das regras de controle está parado há um ano na CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) do Senado Federal, depois de aprovado na CAE (Comissão de Assuntos Econômicos).
O PL 3951, de 2019, prevê a proibição do pagamento em dinheiro de boletos acima de R$ 5 mil e de outras operações acima de R$ 10 mil, vedando também a guarda de valores acima de R$ 300 mil fora do sistema bancário. O projeto parado teve dificuldades para aprovação na CAE, com o senador Flavio Bolsonaro na linha de frente das tentativas de arquivar ou atrasar a tramitação do projeto de lei.
As determinações do projeto de lei que hiberna no Senado seguem tendência internacional, que inclui até mesmo restrição à impressão de cédulas de valor mais elevado — diferentemente do que ocorreu no Brasil, em 2020, com a criação da cédula de R$ 200. O objetivo é impedir a ação do crime organizado, de traficantes, contrabandistas e outros contraventores.
Quando o número de transações em dinheiro também é grande, as suspeitas aumentam. Se os envolvidos são "pessoas politicamente expostas", como define a legislação para registros de operações bancárias, caso do presidente e de seus parentes próximos —, as precauções dos órgãos de controle e fiscalização devem ser ainda maiores. Suspeitas, nesse tipo de transação, decorrem de uma pergunta óbvia: por que não passar com o dinheiro pelo sistema bancário?
Em relação, especificamente, aos negócios imobiliários da família Bolsonaro levantados pela reportagem do UOL, é preciso considerar o largo intervalo de tempo — são 32 anos —, as características das operações, sua frequência e valores envolvidos no conjunto e em cada uma delas. Por todos esses critérios, fica claro que a atividade imobiliária do presidente e de sua família foge aos padrões normais.
Dos negócios imobiliários realizados no período, segundo apurado pela reportagem do UOL, 25 deles, ou 23,3% do total, quase um a cada quatro, foram ou ainda são motivo de investigação e julgamento. As apurações e os julgamentos, tanto nas instâncias administrativas quanto judiciais, têm sofrido interferência, direta ou velada de Bolsonaro, que reclama de "perseguições à família". O fato é que denúncias da prática de "rachadinhas" e emprego de funcionários fantasmas em gabinetes parlamentares, seus e de filhos, repasses de cheques sem registros e outras possíveis irregularidades, capazes de gerar recursos sem origem legal, acompanham a trajetória política do presidente e de seus filhos.
No caso de outros 26 negócios, ou 24,3% do total, novamente quase um em cada quatro, não há informações sobre as formas de pagamento. Apenas em 30 negócios, ou 28% do total, pouco menos de uma em cada três, as transações foram concretizadas com pagamentos em cheque ou transferência bancária.
A média de transações por ano é relativamente alta. São mais de três por ano, acima do padrão quando se compara com a frequência de negócios imobiliários de pessoas físicas com rendimentos típicos de classe média, como declaram ser os parentes de Bolsonaro.
Quanto às 51 transações efetuadas pelo menos em parte com dinheiro vivo, a média também dá ideia de que havia interesse em não revelar a origem dos recursos utilizados. Pelo valor de época, cada negócio envolveu, em média, R$ 264,7 mil. Se fossem feitos atualmente, o valor médio de cada negócio teria sido de cerca de R$ 500 mil.
Qualquer um desses valores médios, atualizados ou não, exigiria a acumulação e guarda de volume expressivo de dinheiro vivo. Mais de 2,6 mil notas de R$ 100, em valores de época, e 5 mil cédulas, em valores atualizados.
Valores médios servem apenas como referência mais geral. Um exemplo recente, levantado pela reportagem do UOL, dá uma ideia melhor do estranho uso de dinheiro vivo nas transações imobiliárias da família Bolsonaro. Trata-se do terreno, com casa luxuosa, segundo classificação da reportagem, comprada em 2018 por José Orestes Fonseca e sua esposa, Maria Denise Bolsonaro, irmã do presidente, na região central da cidade de Cajati, município do Vale da Ribeira, a 230 quilômetros de São Paulo e 28 mil habitantes.
Na compra, conforme a reportagem de Thiago Herdy e Juliana Dal Piva, foram gastos R$ 2,67 milhões, em valores da época, atualizados hoje para R$ 3,47 milhões. O negócio foi feito à vista e o pagamento em dinheiro vivo. Se todo o pagamento tivesse sido feito em notas de R$ 100, em maços de 100 notas cada, seriam 267 maços, ao peso de 6,5 quilos, que necessitariam de uma mala de viagem para serem acomodados e transportados.
Além das suspeitas levantadas pela concentração de negócios imobiliários da família Bolsonaro em dinheiro vivo, há outros sinais de que essas transações não se encaixam nas práticas usuais. Alguns imóveis foram declarados por valores inferiores aos de mercado, o que também levanta suspeitas de pagamentos "por fora" dos registros legais. Outros foram incluídos em operações triangulares, com a aparente participação de "laranjas" — compradores que não eram os efetivos.
Casos de corrupção envolvendo autoridades e parlamentares não são, infelizmente, incomuns no Brasil. São muitos os episódios catalogados na história política brasileira, nos quais malas de dinheiro vivo estão presentes. O mais recente e escandaloso foi descoberto em 2017, com a apreensão de R$ 51 milhões em dinheiro vivo, acondicionado em 14 malas e caixas, num apartamento do deputado baiano Geddel Vieira Lima, do então PMDB (hoje MDB), ex-ministro nos governos de Lula, Dilma e Temer. Comprar com dinheiro na mão bens de valor elevado, como imóveis, entra no roteiro clássico dos crimes de lavagem de dinheiro
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