Campos Neto quer fugir da austeridade fiscal que prega para o governo
É possível encontrar uma infinidade de coisas que parecem boas, mas não são. A ideia de conceder autonomia financeira ao Banco Central brasileiro é uma delas.
Tramita no Senado uma PEC (Proposta de Emenda à Constituição) com esse objetivo. A proposta é patrocinada pelo presidente do BC, Roberto Campos Neto, que tem se manifestado publicamente sobre as vantagens de operar com orçamento próprio, desvinculado do conjunto do governo.
A principal dessas vantagens, segundo as justificativas de Campos Neto, seria permitir a adoção de políticas salariais e de recursos humanos em linha com o que é praticado no setor privado. O presidente do BC se queixa das dificuldades em manter pessoal qualificado por não dispor de orçamento próprio —, como, lembre-se, ocorre no resto do serviço público federal, às voltas com fortes restrições orçamentárias.
Restrições fiscais
Ao recrutar e manter pessoal mais qualificado, de acordo com os argumentos de Campos Neto, o BC estaria em melhores condições de cumprir seu papel e implementar inovações. O Pix é sempre lembrado como uma dessas inovações que poderiam ser aperfeiçoadas e ampliadas com a adoção de regime financeiro próprio.
No fim da história toda, Campos Neto quer se livrar das restrições impostas pela política de controle de gastos do governo. Ou seja, a intenção do presidente do BC é fugir da austeridade fiscal que prega para o resto do governo.
Para que essa fuga seja possível, a PEC prevê a transformação do BC de autarquia em empresa pública. Já aí começam os problemas, reveladores de quanto a ideia não deveria prosperar.
O primeiro desses problemas é que empresa pública, estatal, atua na atividade econômica. O BC não exerce atividade econômica. Suas funções, no caso brasileiro, além da condução da política monetária, e da emissão de moeda, são típicas de órgãos de regulação e fiscalização, no caso, do setor bancário.
Monstrengo institucional
Como órgão regulador, o BC é uma autarquia à semelhança do conjunto das agências reguladoras setoriais — ANP, Anvisa, ANS, Aneel, Ana, Anatel, Anac, e outras, num total de dez. Todas enfrentam dificuldades operacionais administrativas por escassez de recursos. Nem por isso, a melhor saída — ou mesmo a possível — seria transformá-las em empresas públicas.
Não custa recordar que, quando lá atrás, o Banco do Brasil, primeira empresa de economia mista brasileira, foi perdendo as funções hoje concentradas no BC, essa migração representou inegável e incontestável avanço institucional. Com a evolução histórica em mente, não fica difícil entender que a migração do BC para o nicho das empresas públicas significaria um retrocesso institucional.
Mais ainda quando esta empresa pública, conforme previsto na PEC, manteria o poder de polícia hoje exercido pelo BC. Resumindo, o novo BC seria um monstrengo institucional.
Quem imaginaria, por exemplo, a Caixa, que é uma empresa pública, regulando as atividades dos bancos privados concorrentes, e ainda com poder de multá-las?
De onde viria o dinheiro?
Outra questão para a qual as respostas até agora são absolutamente insuficientes diz respeito ao orçamento independente desse novo BC. Uma vez que o BC não exerce atividade econômica, a pergunta óbvia é de onde viria o dinheiro.
Em entrevistas, Campos Neto tem afirmado que os recursos para manter o BC com orçamento independente viria da senhoriagem. Senhoriagem é o termo técnico que define a diferença entre o custo de emitir e distribuir moeda e o valor do dinheiro em circulação.
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Quero receberNa média histórica, essa diferença representou 0,5% do PIB, entre 2002 e 2010, caiu para 0,25% do PIB, entre 2011 e 2019, subindo para excepcionais 2%, em 2020, com o aumento da emissão de moeda, em razão da pandemia. A tendência é que volte a 0,25% do PIB, o que equivale a pouco menos de R$ 25 bilhões anuais.
Como o BC, representando o governo, tem o monopólio da emissão de dinheiro, o lucro obtido com a operação é incorporado às receitas da União. Conclui-se que a apropriação de receitas da senhoriagem diretamente BC retiraria recursos de outros serviços do governo. No limite, o dinheiro diretamente apropriado pelo BC teria o potencial de reduzir o volume de recursos para outras áreas essenciais, como Saúde e Educação.
"Porta giratória"
Ainda que o total representado pela senhoriagem represente pouco mais de seis vezes o orçamento anual do BC, em torno de R$ 4 bilhões, é no mínimo pouco convencional que a instituição encarregada de controlar a inflação tenha de se financiar com recursos que podem aumentar com a elevação da inflação. Mais ainda quando obedece a um sistema de metas de inflação. Em regimes de metas, o volume da senhoriagem é previamente determinado, a partir do crescimento da economia e da demanda por moeda na sociedade.
Além disso, a permissão para que o BC disponha de recursos próprios para decidir, autonomamente, a própria política de remuneração e de benefícios trabalhistas potencializa a "porta giratória". Esse é um problema que já afeta o BC e outras agências reguladoras.
Chama-se de "porta giratória" o movimento de profissionais do setor privado, que assumem posições no órgão público, e depois retornam ao setor privado, levando com eles conhecimento de questões eventualmente sensíveis em termos políticos, que podem configurar vantagens na competição de mercado. A substituição do vínculo funcional de servidor público pela de profissional do setor privado tem o potencial de produzir, como se pode observar, evidente conflito de interesses.
Não há padrão a ser seguido
Alega-se, na defesa do novo regime para o BC, que a experiência de outros países tem sido bem-sucedida. Mas, se é verdade que diversos BCs mundo afora dispõem de inteira ou parcial independência financeira, não se pode desprezar o fato de que não há exatamente um padrão que possa ser seguido.
Tido como o mais importante dos bancos centrais, Fed (Federal Reserve), dos Estados Unidos, por exemplo, é uma federação bancos centrais regionais, relativamente independentes entre eles, inclusive no campo financeiro. Trata-se, porém, de um modelo único, não replicado por nenhum outro. Também sua independência financeira não é total, e se limita ao suporte para cumprimento de suas funções regulatórias.
Entre os vários tipos de arranjo institucional seguidos pelos bancos centrais com independência financeira, a tendência é tentar separar as funções de regulação de mercado das de formulação de política monetária e emissão de moeda. Essa "solução" tem se revelado problemática.
A economista Monica de Bolle, pesquisadora do PIIE (Peterson Institute for International Economics), em Washington, lembra do caso da quebra do banco inglês Northern Rock, na esteira da crise das hipotecas imobiliárias sem lastro no mercado americano, a partir de 2007 e com ápice em 2008. O banco inglês era um gigante de hipotecas e acabou nacionalizado pelo BoE (Bank of England, banco central inglês).
Antes do episódio, que gerou corrida bancária e quase causou uma crise sistêmica no mercado bancário inglês, as funções regulatórias tinham sido separadas das de formulação de política monetária e emissão de moeda. A separação causou um lapso de tempo entre a percepção da crise pelo ente regulador e a concessão de liquidez para estancar as corridas bancárias pelo órgão que cuidava da política de juros e de estabilidade financeira.
O relator da PEC da autonomia financeira para o BC, senador Plínio Valério (PSDB-AM), que já tinha relatado a PEC que concedeu independência operacional ao BC, quer apresentar seu relatório até abril. É pouco provável que consiga cumprir o cronograma, tantas são as dúvidas e incertezas, inclusive de caráter constitucional, que envolvem o projeto.
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