Carrefour: pecuária devolve na mesma moeda e se protege de ataque francês
Desde a semana passada, o noticiário brasileiro aborda a interrupção do abastecimento do frigorífico JBS, e outros em seguida, às lojas do Carrefour. Isso aconteceu após Alexandre Bompard, presidente da rede varejista francesa, afirmar que a companhia deixaria de comprar carne proveniente do Mercosul. Ele não criticou nominalmente o Brasil, mas falou em proteger o interesse dos produtores franceses.
Mesmo depois de o Carrefour esclarecer que a decisão diz respeito somente às lojas da França, a pecuária brasileira devolveu na mesma moeda. O setor optou pelo protecionismo de mercado, estabelecendo um cabo de guerra para ver quem tem mais força: produtor ou comprador.
O Brasil é o segundo mercado mais importante do Carrefour, ficando atrás somente da própria França. Em 2023, o faturamento foi de ? 21,4 bilhões no Brasil, o que representa 23% da receita do grupo. Já a França correspondeu a apenas 0,53% da carne brasileira exportada entre janeiro e outubro de 2024.
Os números, portanto, indicam que o mercado francês não é tão relevante para esta interrupção no abastecimento. Por isso, então, boicotar o próprio mercado brasileiro surtiria mais efeito, à medida que o grupo Carrefour - junto às marcas Atacadão e Sam's Club - é a maior rede de varejo do país, de acordo com a Associação Brasileira de Supermercados (ABRAS).
Nesta postura do CEO do Carrefour fica nítida a ameaça que a carne brasileira representa à Europa, pela qualidade e preço. Alcides Torres, analista-chefe da Scot Consultoria, especializada em pecuária, lembra que mesmo com os subsídios do governo francês, a proteína animal do Brasil continua mais competitiva.
"A verdade é que a nossa carne é muito barata, a qualidade é muito boa, a vida de prateleira é melhor que a deles, e isso afeta todo o sistema de produção subsidiado", ele diz ao UOL.
De acordo com a Associação do Criadores do Mato Grosso (Acrimat), que reúne o maior rebanho pecuário brasileiro, a carne francesa é vendida por 13 euros o quilo, enquanto o produto brasileiro chega a 4 euros o quilo. Assim, o Brasil é visto como uma ameaça aos pecuaristas franceses.
Esta união nacional entre produtores rurais, entidades de classe e o próprio governo tem sido vista de forma positiva, pois significa que o Brasil está amadurecendo no sentido de se impor às exigências europeias. Ainda assim, o analista da Scot Consultoria pondera: "O que dá medo é que mais redes varejistas no mundo, para adotar uma postura de compliance, deixem de comprar produtos do Brasil".
A preocupação maior certamente é quanto à postura da China, pois esta sim tem peso considerável nas exportações da proteína animal.
Para evitar qualquer fechamento de mercado mais significativo, a análise de Alcides Torres é que os frigoríficos não deixarão de exportar para o Carrefour, "porque quem tem carne precisa vender". A JBS não esclareceu se, de fato, interrompeu a exportação para a França.
Além disso, o momento do boicote se faz pertinente, já que o mercado enfrenta dificuldade de comprar boiadas, e a produção atual pode ser direcionada para outras redes de supermercado. Seria diferente se o mercado nacional e internacional estivessem inundados de carcaças à disposição.
Questionado se já houve algum impacto para as lojas francesas do Carrefour na França, a rede varejista não se pronunciou. Em relação ao Brasil, a companhia afirmou que está "em diálogo constante na busca de soluções que viabilizem a retomada do abastecimento de carne nas nossas lojas o mais rápido possível".
O conflito escalou para os governos. A Embaixada do Brasil na França, em nota, rebateu declarações de que haveria risco de excesso de carne proveniente do Mercosul "que não respeitaria exigências e normas". Isso porque, o mercado brasileiro atende a todas as exigências da União Europeia, sendo referência na pecuária tropical.
De acordo com o Broadcast Agro, do Estadão, a embaixada da França em Brasília solicitou uma audiência entre o embaixador francês Emmanuel Lenain, e o ministro Carlos Fávaro. O encontro ainda não tem nada para acontecer.
Carrefour, Danone e o que aprender com isso?
Recentemente, vale lembrar que a Danone, também francesa, havia falado em cancelar a compra de soja brasileira e depois voltou atrás retificando a fala.
Newsletter
OLHAR APURADO
Uma curadoria diária com as opiniões dos colunistas do UOL sobre os principais assuntos do noticiário.
Quero receberSeja pela má fama do desmatamento no passado, pelo desconhecimento da geografia - como achar que tudo é Amazônia - ou ainda por acreditar que o ato de um produtor vale para todos, o fato é de que o mercado europeu tem uma visão muito simplista em relação ao agro brasileiro.
Daniel Vargas, professor da Escola de Economia da FGV-SP, diz que a percepção europeia é medida e reforçada pelo modelo científico chamado ILUC (Indirect Land Use Change), que cada vez mais opera como uma norma oculta do mercado de commodities.
"Hoje, segundo estes modelos, alguém planta milho na segunda safra no sul do país, e as árvores começam a cair na Amazônia. O desafio brasileiro se acentua, porque os dados e funções segundo os quais estes modelos são alimentados e calibrados com frequência distorcem a dinâmica produtiva nacional. De todo modo, é assim que o mercado europeu, cada vez mais, enxerga o mundo", explica Vargas.
A questão é: o que tirar de lição com estes episódios? Para o professor da FGV, o melhor será combater os argumentos com ciência, fornecendo modelos que tenham cada vez mais comprovação de metodologia e transparências no processo produtivo. Até porque, a lei antidesmatamento da União Europeia - EUDR - pode ser postergada, mas um dia batera à porta e outros mercados, como o asiático, podem seguir tendência.
Deixe seu comentário