O dilema econômico da Argentina: um final terrível ou um terror sem fim
Dizer que a situação econômica atual da Argentina é difícil e as alternativas são limitadas é um eufemismo. Não afeito a essa linguagem mais sutil, Javier Milei, recém-empossado presidente do país, foi direto ao ponto em seu discurso inaugural e declarou: "No hay plata" ("Não há dinheiro").
Enfrentando uma inflação de 160% nos últimos 12 meses, imenso déficit público, falta de reservas cambiais, necessidade de renegociar a dívida com o FMI e uma situação social horripilante com 40% da população na pobreza, Milei anunciou as primeiras medidas de seu plano econômico.
Mas como a Argentina chegou nesta situação? Para compreender o que houve e, o plano do governo, é preciso voltar um pouco no tempo.
Argentina e Brasil: almas gêmeas nas décadas de 1980 e 1990
Com a redemocratização da Argentina em 1983, e do Brasil em 1985, os novos governos civis assumiram já sendo obrigados a enfrentar uma inflação que crescia assustadoramente e uma grave crise de dívida externa. Os governos Raul Alfonsín (Argentina) e José Sarney (Brasil) adotaram, respectivamente, os planos Austral e Cruzado, com medidas heterodoxas muito semelhantes, notadamente, o congelamento de preços e a reforma monetária. Apesar de uma certa euforia inicial, os planos fracassaram, e a inflação voltou com força renovada durante a segunda metade das décadas de 1980 e início de 1990.
Mudando a estratégia, o governo argentino de Carlos Menem adotou a dolarização da sua economia em 1992, e o governo brasileiro de Itamar Franco, o Plano Real em 1994, que, entre outras medidas, utilizou uma âncora cambial, uma forma mais flexível de atrelar a moeda do país ao dólar, sem precisar renunciar a ela, como fez a Argentina. Os dois planos foram bem-sucedidos durante a década de 1990 fazendo com que a inflação de ambos os países convergisse para taxas próximas às dos países com economias saudáveis, com taxas, em geral, de um dígito anual apenas.
Caminhos diferentes a partir dos anos 2000
Os anos 1990 foram muito turbulentos para os mercados emergentes. Sucessivas crises econômicas como a do México em 1994/95, da Ásia em 1997 e da Rússia em 1998 provocaram fortes saídas de divisas dos mercados menos sólidos como Brasil e Argentina.
O primeiro foi obrigado a desistir da âncora cambial em 1999, por falta de reservas cambiais, mas conseguiu fazer uma transição bem-sucedida (apesar de custosa em termos de dívida pública e inflação em curto prazo) para o câmbio flutuante, justamente por não ter renunciado à sua moeda nacional. A Argentina não teve a mesma sorte e, por absoluta falta de reservas cambiais, em 2001, foi obrigada a abandonar a dolarização de forma desastrosa, o que ficou conhecido como "corralito", um bloqueio de ativos financeiros dos cidadãos argentinos com conversão forçada, algo que, em alguma medida, se assemelhava ao Plano Collor brasileiro.
Desde então o destino das "almas gêmeas" foi distinto. O Brasil adotou o tripé da estabilidade com câmbio flutuante, metas de inflação e um certo controle sobre o déficit público, políticas econômicas mantidas em algum grau por todos os governos brasileiros no século 21, com exceção do governo Dilma. Isto permitiu ao país se beneficiar de um mercado internacional favorável na maior parte do tempo, acumulando reservas internacionais, em média mantendo a inflação baixa e tendo crescimento do PIB (ainda que modesto), além de reduzir a pobreza (com altos e baixos) ao longo das últimas duas décadas. Os ganhos da estabilização econômica a partir de 1994 foram mantidos e ampliados em alguma medida, ainda que muitos problemas sociais e econômicos persistam no país.
O terror sem fim econômico da Argentina
A Argentina entrou no século 21 em grave crise econômica com o "corralito", deixando a população a tal ponto insatisfeita que o presidente de então, Fernando de la Rúa, foi obrigado a renunciar ao seu mandato e fugir de helicóptero da Casa Rosada, invadida por manifestantes. A resposta padrão, em grande parte dos governos subsequentes, foram políticas econômicas populistas que concediam algum alívio a curto prazo, mas às custas de agravarem o problema a longo prazo. O termo "populista" aqui foi utilizado conforme o sentido que lhe atribuiu o ex-primeiro-ministro britânico Winston Churchill —"o estadista pensa na próxima geração, enquanto o populista pensa na próxima eleição".
Criou-se uma dinâmica perversa, na qual a perda de renda da população com a inflação, recessão e desemprego faziam o governo aumentar os gastos públicos dando subsídios cada vez maiores para conter preços de alimentos, combustíveis e outros produtos básicos, o que significava um alívio a curto prazo, mas acarretava mais inflação e déficit público a longo prazo, agravando o problema de forma recorrente e contínua. Neste ciclo negativo, a inflação subia, a população empobrecia, o déficit público aumentava de forma autorreforçadora, criando um verdadeiro terror sem fim econômico no país.
O fim terrível
A fim de tentar quebrar essa dinâmica perversa, Milei anunciou medidas profundas de cortes de gastos públicos e subsídios concedidos pelo governo, o "plano motosserra", aliado a uma desvalorização do câmbio oficial de 365 para 800 pesos por dólar (aumento de 118% na cotação), aproximando a taxa oficial do dólar paralelo ("blue") precificado em torno de 1.070 pesos por dólar, para realinhar os preços das tarifas públicas, diminuindo os subsídios e conferindo competitividade às exportações Argentinas.
O próprio governo reconhece que, a curto prazo, as medidas trarão mais inflação e aumento da pobreza, mas argumenta que este remédio amargo é a única solução possível para quebrar a dinâmica negativa em que o país se encontra por décadas.
Para além dos argentinos, por óbvio, para o Brasil também seria ótimo que o plano desse certo, afinal, a Argentina é uma grande parceira comercial e uma democracia sólida, aspectos econômico e político de confluência dos dois gigantes da América do Sul.
O futuro do plano é incerto pelo seu forte impacto social negativo a curto prazo, previsível resistência no Congresso Nacional para um governo que não possui maioria parlamentar e necessidade de renegociação da dívida externa com o FMI.
Contudo, o esgotamento e cansaço da população com o modelo populista na Argentina, pode ser onde, talvez, a esperança resida, afinal, como diz o ditado: "Às vezes é melhor um final terrível que um terror sem fim". Vale a torcida para um final terrível breve que abra espaço para acabar o terror sem fim econômico argentino.
61 comentários
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Marcos Antonio Vasconcelos da Silva
Impossível dar certo fazendo a famosa "austeridade fiscal" bater no lombo apenas do trabalhador. Por que será que Milei não jogou parte da fatura pra os ricaços da elite argentina? Em vez disso Bullrich prefere jogar a polícia em cima dos trabalhadores e trabalhadoras argentinos que saiam às ruas pra protestar. Nos próximos meses teremos muita convulsão social na Argentina por causa da fome e da miséria. Os ricos ficarão mais ricos e os pobres mais pobres. Ninguém precisa ser o Walter Mercado pra adivinhar que com Milei a Argentina só vai perder tempo com o período de "choro e ranger de dentes", que vai recair apenas sobre a classe trabalhadora. Os ricos deveriam voltar a lembrar que pra conter as ideias comunistas, precisam ceder anéis à maioria da população, pra não perderem as mãos. Retomem o estado do bem-estar social, antes que o pior aconteça.
Diego Diogenes Dourado
Os argentinos sempre se acharam os melhores e mais europeus da américa do Sul. Fizeram políticas de branqueamento no passado, não se vê negros naqueles país. Agora a população elegeu um fascista da extrema direita. Infelizmente as consequências serão ainda piores.
Ricardo Jose Kuschnir
A matéria mais lúcida a respeito da realidade argentina que tenho lido na UOL na última década, pelo menos.