É o fim do pacote flexível? Crises de 123milhas e Hurb escancaram riscos

A sustentabilidade do modelo de viagem com data flexível, em que o consumidor compra um produto mais barato sem data definida para ir e voltar, é vista com ceticismo por especialistas do turismo. Em um intervalo de três meses, clientes do Hurb e da 123milhas foram prejudicados com adiamentos ou cancelamentos repentinos de pacotes promocionais.

Modelo de negócio

Sustentabilidade financeira do modelo levanta dúvidas. A professora e pesquisadora de turismo da USP (Universidade de São Paulo) Mariana Aldrigui acredita que o modelo flexível oferecido por agências de viagens online se aproxima mais de uma operação financeira do que da venda de um serviço. Na prática, o consumidor investe dinheiro para que a empresa futuramente consiga bancar uma viagem que acontecerá em um ano ou mais, avalia a especialista.

Risco do negócio é maior. No pacote flexível, o consumidor está comprando um direito a uma viagem, não as passagens e hospedagens em si, afirma Marcelo Oliveira, assessor jurídico da Abav Nacional (Associação Brasileira de Agências de Viagens). Segundo o especialista, o risco da operação é alto, porque o negócio é influenciado por fatores externos, como o câmbio, valor de combustíveis e tributação, que fogem do controle das empresas.

Modelo oferece poucas garantias para o consumidor. Mariana diz que a flexibilidade traz incertezas em comparação com o modelo convencional de viagem, uma vez que as reservas da companhia aérea e do hotel só estarão disponíveis no momento em que a empresa liberar e emitir os bilhetes. As reclamações conta a Hurb e a 123milhas aumentaram justamente quando as empresas passaram a não conseguir entregar o prometido.

Empresas foram impactadas pela alta dos preços e da demanda no pós-pandemia. Pacotes flexíveis já existiam antes da chegada da pandemia de covid-19. No entanto, eles ganharam força com as restrições de viagens, quando as pessoas aproveitaram os preços baixos para comprarem pacotes e passagens que poderiam ser usados quando as viagens fossem autorizadas novamente. Com a flexibilização da circulação de pessoas, os preços tiveram forte alta e as empresas passaram a não conseguir realizar as viagens nos preços contratados.

Esse modelo de negócio sempre tem 'sensibilidade', porque não tem uma conexão direta com a prática padrão do mercado, inclusive global. São clientes que aceitam a oferta que é realizada de um direito a viajar. Tem uma expectativa de viagem futura, mas não tem uma passagem emitida.
Marcelo Oliveira, assessor jurídico da Abav Nacional

Venda de pacotes suspensa

A 123milhas suspendeu a venda de pacotes flexíveis por tempo indeterminado. A decisão partiu da própria empresa depois de cancelar a emissão de passagens e pacotes da linha promocional comprados para os meses de setembro, outubro, novembro e dezembro deste ano. A empresa sofreu nesta quarta-feira suas primeiras derrotas na Justiça.

Hurb foi proibido de vender estes pacotes pelo governo em maio deste ano. No entanto, a empresa está vendendo um pacote similar, chamado de "Mês Fixo". O consumidor escolhe o mês em que quer viajar e o Hurb checa quais as datas disponíveis dentro dos termos da promoção.

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Procuradas pelo UOL, as empresas não se manifestaram até o fechamento da reportagem. Em nota anterior, a 123milhas diz que a linha Promo equivale a 7% de todos os embarques de 2023 da empresa. O Hurb passa por um processo de reestruturação. Nos últimos meses, a empresa trocou de CEO e demitiu 400 pessoas.

123milhas culpa fatores como alta demanda por voos e juros altos. Ao anunciar o cancelamento da venda de pacotes flexíveis, a 123milhas justificou a decisão à "persistência de fatores econômicos e de mercado adversos, entre eles, a alta pressão da demanda por voos, que mantém elevadas as tarifas mesmo em baixa temporada, e a taxa de juros elevada".

Quando você vê valores extremamente discrepantes, ou a empresa tem um plano forte de caixa para aguentar isso ou não se sustenta.
Marcelo Oliveira, assessor jurídico da Abav

Regulamentação e futuro da modalidade

Venda de pacotes flexíveis não é proibida pela lei. No entanto, Oliveira diz que falta regulamentação para diminuir quantidade de problemas enfrentadas pelos consumidores.

Viagens sem data definida podem ser vantajosas para o setor de turismo. Mariana afirma que essa flexibilização teria melhor resultado com ofertas voltadas para o período de baixa temporada —em meses como abril ou agosto, por exemplo—, quando destinos turísticos costumam ser menos visitados.

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O padrão de consumo do brasileiro é querer o menor preço no dia mais caro. Todo mundo quer desconto no réveillon ou no Carnaval. Em se pensando em datas flexíveis, não é uma estratégia sustentável para destinos muito procurados e em alta temporada.
Mariana Aldrigui

Não precisa dizer se é legal ou ilegal. É um modelo de negócio aplicado. Se causa confusão aos olhos dos consumidores, tem muito consumidor que acaba [comprando] na inocência e se complicando com a situação. É algo que pretendemos muito avançar com regulamentação para facilitar o entendimento.
Marcelo Oliveira, assessor jurídico da Abav

Quais cuidados consumidor deve tomar?

Cliente deve olhar as letras minúsculas do contrato com atenção. Mariana Aldrigui diz que esse tipo de produto, popularizado na pandemia por juntar preço e disponibilidade, requer cautela do consumidor, que geralmente concorda com os termos contratuais sem ler. Ela não descarta, porém, a responsabilização dessas agências de viagens online pela falta de transparência da comunicação.

Orientação de advogados e órgãos de defesa do consumidor é de que consumidores não aceitem vouchers oferecidos pela 123milhas. O Procon-SP aconselha que os clientes entrem em contato com a empresa e que a comunicação ou tentativa de contato seja registrada. É aconselhável registrar uma reclamação junto aos Procons caso as expectativas não sejam atendidas.

Presidente da CPI das Pirâmides Financeiras, em andamento na Câmara, diz que comissão vai investigar 123milhas. O deputado federal Áureo Ribeiro (Solidariedade-RJ), classificou a situação de "muito grave". "Muitas famílias se programaram e agora todo o sonho vai por água a baixo", escreveu no X, ex-Twitter.

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Cliente está investindo na capacidade de uma empresa de encontrar bons preços para uma viagem que ele gostaria de fazer. A sensação que tenho é que existe exploração da boa-fé e da expectativa de fazer uma viagem porque não há clareza do que o que está se vendendo ali não é de fato um produto de turismo, mas algo ligado a investimento financeiro.
Mariana Aldrigui, professora da USP

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