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Reinaldo Polito

Quem é melhor: bom aluno filhinho de papai ou bom aluno que teve de ralar?

Getty Images/iStockphoto/nadia_bormotova
Imagem: Getty Images/iStockphoto/nadia_bormotova

28/08/2018 04h00

“A vida é como uma pedra de amolar, tanto pode desgastar-nos como afiar-nos, tudo depende do metal de que somos constituídos”. (Bernard Shaw)

Você já deve ter visto no futebol times apenas limitados conseguirem bater grandes equipes. O jogo aplicado com determinação e a força de vontade são alguns dos ingredientes que podem fazer um escrete vencedor, até mesmo quando suas condições técnicas são apenas razoáveis.

Times sem tanta qualificação técnica, mas que se preparam com disciplina e comprometimento, chegam a pregar peças, surpreendendo os que se julgam até imbatíveis. Em determinadas circunstâncias o preparo pode valer mais que a competência.

Assim é em todas as áreas. Profissionais competentes, formados pelas mais bem conceituadas universidades do mundo, não conseguem, às vezes, atingir o mesmo resultado que outros oriundos de escolas consideradas de nível inferior. Há empresas que dizem preferir “alunos de primeira linha” a “alunos de escolas de primeira linha”.

Na ONG Via de Acesso, que presido há mais de 15 anos, ouvimos com frequência empresários dizendo que preferem alunos que tiveram de ralar para pagar a escola, passar noites sem dormir, comprometer finais de semanas incontáveis, que fizeram esforços acima da maioria das pessoas a outros que receberam tudo mais ou menos de mão beijada da família.

Bons alunos de boas escolas, naturalmente, terão sempre a preferência, mas, se não demonstrarem disciplina, preparo, brilho nos olhos e muito empenho, poderão ser preteridos para dar lugar àqueles que demonstram, segundo algumas dessas empresas, sangue nas veias. Ou seja, a disciplina e a boa vontade podem se constituir, em determinados momentos, em requisitos tão ou até mais importantes de avaliação.

Quando o entusiasmo se sobrepõe à competência

Para os gregos entusiasmo é o Deus interior. Foi esse entusiasmo o responsável, por exemplo, para que Victor Hugo, um dos maiores escritores mundiais de todos os tempos, se tornasse vencedor em um embate judicial. A situação em que foi envolvido e a forma como se comportou mostram bem a importância dessa determinação.

Embora não tivesse conhecimentos jurídicos, contando apenas com a sua excelente capacidade de comunicação e o envolvimento emocional, foi protagonista de uma das mais belas páginas da oratória de que se tem conhecimento. Vale a pena conhecer um pouco a respeito desse episódio.

No dia 11 de junho de 1851, Victor Hugo precisou tomar as dores de seu filho Charles Hugo. Depois de presenciar o esforço quase sobre-humano de um homem para se livrar da pena de morte, o rapaz sentiu-se tão tocado e indignado com aquele fato que resolveu escrever um artigo combatendo a pena capital. Seu texto foi publicado em um dos mais importantes jornais franceses.

Só que Charles acabou se envolvendo em um grande problema. A pena de morte era lei. Por isso, os adversários de seu pai se valeram daquela oportunidade para atacar Victor Hugo, processando seu filho. O caso foi a julgamento, e o próprio escritor resolveu fazer a defesa no tribunal.

Victor Hugo, embora não tivesse o domínio profundo da legislação e pudesse ser comparado a um mau advogado, proferiu um discurso tão emocionado, de forma tão entusiasmada que conseguiu absolver aquele que tanto amava. Ele se colocou ao lado do filho e chamou para si a responsabilidade daquele “crime”. Vamos observar alguns dos momentos mais relevantes da sua defesa.

Começou chamando para si a responsabilidade:  'O verdadeiro culpado neste assunto, se há algum, não é meu filho; sou eu!'

Após chamar a atenção com essa afirmação impactante, com voz forte, contundente e emocionada repete a mesma frase: 'Sou eu!'

E, cada vez mais emocionado, como se a própria vida estivesse em jogo, afirma: 'Esse crime (o de combater a pena de morte) cometi-o muito antes que meu filho. E me denuncio, senhores! Cometi-o com todas as circunstâncias agravantes - com premeditação, com tenacidade, com reincidência!'

Dessa forma conseguiu chamar a atenção para o que pretendia dizer, reforça a tese de que a culpa era dele próprio. Falando com energia, com alma e transparência se entrega à defesa do filho: 'Isso que meu filho escreveu, só o escreveu porque eu o inspirei desde a infância, porque, ao mesmo tempo em que é meu filho, segundo o sangue, é meu filho segundo o espírito; porque quer continuar a tradição de seu pai. Eis aí um delito estranho e pelo qual me admiro que se queira persegui-lo!'.

Com esse discurso inspirado e repleto de energia e envolvimento, mesmo com todas as falhas próprias de alguém que tenta atuar como advogado sem conhecimento técnico, conseguiu livrar o filho das acusações que lhe faziam. Será que um advogado que conhecesse profundamente a legislação francesa conseguiria dizer com tanto sentimento o que se passava no coração de um pai?

Portanto, mesmo que você seja muito competente, não vacile. Vez ou outra poderá surgir alguém se apresentando com tanta energia e determinação que o surpreenda e o derrote. Da mesma forma, se você em certos momentos não se julgar tão competente, saiba que essa força interior do entusiasmo talvez possa lhe proporcionar vitórias consideradas até inatingíveis.

Quando o preparo supera a falta de competência

Se perguntarmos qual o político com pior capacidade oratória, provavelmente a maioria responderá que é a ex-presidente Dilma Rousseff. Ela já deu inúmeros exemplos da sua falta de habilidade para falar em público. Em situações simples, nas quais qualquer político faria discursos com bastante tranquilidade, ela se enrola e acaba não dizendo coisa com coisa.

Apesar de toda essa inabilidade para se expressar em público, Dilma se saiu muito bem nos debates que travou com José Serra em 2010 e Aécio Neves em 2014. Você pode até considerar que os dois oponentes de Dilma não eram lá grandes oradores, mas comparados com ela são infinitamente superiores.

Vamos nos ater ao último pleito, já que está mais próximo da nossa memória. Dilma se preparou tão bem para aqueles debates que, se não venceu, também não perdeu. Para cada ataque de Aécio, ela tinha a resposta pronta. Não só isso, pois lançou mão também de uma excelente estratégia.

Ao final de cada resposta, Dilma aproveitava para jogar uma espécie de casca de banana e fazia uma acusação. Dessa forma, não permitia que o adversário continuasse atacando, já que ele precisava se defender do ataque recebido. Para agir assim, é evidente que ela teve de se preparar muito para aqueles confrontos.

Dilma conseguiu dessa forma compensar seus problemas oratórios com preparo e bastante disciplina. Ao final de cada embate, seus correligionários suspiravam dizendo: 'sobreviveu a mais um'. Até hoje me perguntam como foi que Dilma, com tantos problemas de comunicação, conseguiu superar Aécio naqueles debates.

São exemplos que nos ensinam a não dormir em berço esplêndido. Por mais competentes que nos julgamos ser, jamais poderemos negligenciar o preparo, a disciplina e o entusiasmo. Se tivermos uma semana para nos preparar, vamos nos preparar durante uma semana. Se tivermos um mês, vamos nos preparar durante um mês. E assim, por tanto tempo que tivermos à disposição. Quanto mais bem preparados e envolvidos estivermos, maiores serão as chances de que nos tornemos vencedores nas empreitadas que enfrentamos.

Superdicas da semana:

  • O preparo e o envolvimento podem superar a competência
  • Devemos nos preparar pelo tempo que tivermos à disposição
  • Se o oponente for mais competente, enfrente-o com mais preparo
  • Se o oponente não for tão competente, cuidado, pois ele poderá estar mais bem preparado

Livros de minha autoria que ajudam a refletir sobre esse tema: "29 Minutos para Falar Bem em Público", publicado pela Editora Sextante; "As Melhores Decisões não Seguem a Maioria", “A influência da emoção do orador”, “Oratória para advogados”, "Assim é que se Fala", "Conquistar e Influenciar para se Dar Bem com as Pessoas", “Superdicas para escrever uma redação nota 1.000 no ENEM” e "Como Falar Corretamente e sem Inibições", publicados pela Editora Saraiva; e “Oratória para líderes religiosos”, publicado pela Editora Planeta.

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