IPCA
0,83 Abr.2024
Topo

Reinaldo Polito

E se a China invadir o Brasil?

Congresso Nacional do Partido Comunista da China - Ju Peng/ Xinhua
Congresso Nacional do Partido Comunista da China Imagem: Ju Peng/ Xinhua

Colunista do UOL

18/01/2022 04h00

Tudo o que nos parece estranho condenamo-lo, assim como o que não entendemos.

Montaigne

Virou febre. É impressionante o número de pessoas que assistem às séries asiáticas aqui no Brasil. A minha mulher é uma delas. De vez em quando ouço uma gritaria na televisão e vou ver o que está acontecendo. São os coreanos. Quando ficam felizes, especialmente as mulheres, costumam dar tapas nas pessoas que estão ao seu lado. Em outras oportunidades, são os chefes dando tabefes nos subordinados para ver se entram na linha.

É estranho

Para nós pode parecer absurdo. Para eles, entretanto, é cultural. Agem assim com toda naturalidade. Quem assiste a essas séries com olhos de ver, descobre certas idiossincrasias que caracterizam bem cada sociedade. Não há certo ou errado, pois cada um vive de acordo com seu legado de tradições, hábitos e costumes.

Há situações, entretanto, em que estamos no contato direto com outros povos, em uma relação intercultural. Os antropólogos afirmam que, geralmente, adotamos uma postura antropocêntrica, e, quer queiramos ou não, passamos a usar a régua da nossa própria cultura na avaliação de comportamentos e costumes.

Nesses casos, precisamos ir a Roma vestidos como os romanos. É um erro imaginar que na terra deles as pessoas irão se comportar de acordo com a nossa forma de enxergar a vida. Não, nós é que precisamos nos adaptar a eles. É por isso que o processo de comunicação tem papel relevante para o entendimento dessa cultura e a necessária colaboração entre os envolvidos.

Um jeito autoritário

Há cerca de 20 anos ministrei vários cursos em Manaus. A empresa que me contratou prestava consultoria para algumas organizações instaladas naquela região. A assessoria deles era abrangente. Ia desde o treinamento do pessoal de chão de fábrica até os gestores. Em praticamente todas as áreas, como, por exemplo, Recursos Humanos, Produção, Vendas, Marketing, Finanças, etc.

O nosso curso fazia parte do programa de desenvolvimento da comunicação da alta gerência desses seus clientes. Com o crescimento dos negócios, o pessoal que ocupava a hierarquia mais elevada era obrigado a fazer apresentações com frequência cada vez maior. Nessas oportunidades estavam representando a empresa, e uma oratória deficiente poderia comprometer a imagem da companhia.

Outra cultura

Um dos participantes do curso, ainda com acentuado sotaque coreano, se expressava em tom bastante autoritário. Após algumas tentativas para que corrigisse aquele comportamento, perguntei ao diretor da empresa que me contratara se ele sabia o motivo daquela atitude tão resistente. Sua resposta foi surpreendente:

"Polito, você não tem ideia do que tenho enfrentado por aqui. Só para dar um exemplo. Tive de realizar várias reuniões com a chefia de certas empresas coreanas para explicar que no Brasil não se pode bater no empregado. Eles estavam tendo muitas reclamações trabalhistas por causa da forma como tratavam os subordinados. Se alguém cometesse um erro que considerassem grave, não pensavam duas vezes antes de dar uns tapas como corretivo".

Esse é um exemplo da necessidade de adaptação cultural. No caso das empresas coreanas instaladas no Norte do Brasil, até pelos problemas com a justiça do trabalho, tiveram de se enquadrar mais depressa.

Os estudos de Hall

Essa identidade nacional foi bem estudada por Stuart Hall na obra "A identidade cultural na pós-modernidade". Para conceituar o espírito de uma nação, o autor recorre aos ensaios desenvolvidos por Ernest Renan: "A identidade nacional é constituída pelas memórias do passado, pelo desejo por viver em conjunto e pela perpetuação da herança".

Como vemos, entender as diferenças culturais de uma sociedade implica a interpretação de intrincados e complexos componentes de sua formação e das sutis mudanças ocorridas ao longo do tempo.

Os contatos com realidades distintas são cada vez mais comuns. Alguém duvida que a China, no momento em que caminha para se transformar na nação mais poderosa do planeta, não "invadirá" os mais diferentes países, estendendo seus braços econômicos, culturais e sociais? Na verdade, essa presença asiática já é percebida há muitos anos em todos os cantos do mundo.

Os chineses

Até por conveniência, os chineses procuram conhecer cada vez mais quais são as peculiaridades do país onde vão atuar. A partir daí, agem de acordo com essa realidade para que possam assim atenuar possíveis resistências ou preconceitos.

Por isso, a proliferação das séries, mostrando em suas temporadas e episódios como vivem e se comportam as pessoas em seu local de origem, não deixa de ser uma forma sutil de fazer com que suas condições e peculiaridades culturais sejam conhecidas.

Sempre foi e continuará sendo assim. Lá pelos anos 1940/50, por exemplo, tivemos os francesismos, por causa da forte influência dos costumes franceses em nossa língua. Em décadas mais recentes, com o domínio norte-americano, o inglês passou a ser uma espécie de idioma universal.

Na esteira dessa sequência histórica, podemos refletir: diante da "invasão" cada vez mais evidente dos chineses, até quando as nações resistirão ao mandarim?

Superdicas da semana

  • Em Roma vista-se como os romanos
  • Há várias formas de tornar familiar uma cultura, como os filmes e séries
  • O que é estranho para nós, pode ser normal em outras sociedades
  • Nesse mundo globalizado, é prudente aprender como vivem as pessoas em outros países

Livros de minha autoria que ajudam a refletir sobre o tema: "Como falar corretamente e sem inibições", "Os segredos da boa comunicação no mundo corporativo", "Saiba dizer não sem magoar as pessoas" e "Oratória para advogados", publicados pela Editora Saraiva. "29 minutos para falar bem em público", publicado pela Editora Sextante. "Oratória para líderes religiosos", publicado pela Editora Planeta.