Um revisor mal-intencionado pode acabar com a civilização como nós a conhecemos.
Luís Fernando Veríssimo
Sou um escritor de livros de não-ficção. Publiquei 34 obras que foram bem-sucedidas. Venderam mais de 1,5 milhão de exemplares e estão em 39 países. Cito essas informações para dizer que tenho lugar de fala quando o tema é revisionismo literário.
A vida imitou a arte
Além dos livros de não-ficção, ao longo dos últimos 40 anos já escrevi também mais de dois mil textos, alguns deles, poucos, ficcionais. Quando os redigi, o interesse não era divulgá-los ao público. Eu os produzi por puro deleite.
Com o tempo, entretanto, eis que surge uma notícia aqui, outra ali, com informações surpreendentes, e, por coincidência, associadas àqueles textos "engavetados". Por exemplo, a matéria da Reuters em 2016 dizendo que a China investira US$180 milhões em um telescópio gigante para buscar vida alienígena.
Saíram das sombras
Escarafunchei os meus textos ficcionais e publiquei aqui mesmo no UOL a história de um grupo de pessoas que foram recepcionar alguns extraterrestres que chegariam a uma região próxima de Varginha.
Dessa forma, alguns foram saindo das sombras e mostrados aos leitores. E senti imenso prazer em compartilhar esse produto das minhas fantasias com as pessoas que acompanham as colunas semanais que publico.
Quatro gigantes da alma
O primeiro susto que levei com relação ao revisionismo ocorreu em 1986. Eu acabara de lançar o livro "Como falar corretamente e sem inibições". A partir da quarta edição, julguei oportuno acrescentar uma nota de rodapé. Ao tratar do medo de falar em público, citei a obra de Emilio Mira Y López, "Quatro gigantes da alma".
Lopez foi um conceituado sociólogo, psiquiatra e médico psicólogo. Atuou como professor e conferencista em diversos países, inclusive no Brasil, onde veio a falecer. Uma autoridade! A minha citação foi:
O medo, apontado como o maior inimigo do homem por Emilio Mira y López, um dos mais destacados estudiosos do comportamento humano, constitui o gigante negro cujos tentáculos escravizam a vontade, limitam a criatividade, interrompem o desenvolvimento e o despertar das potencialidades.
Já naquela época, há quase 40 anos, recebi mensagens de leitores me chamando de racista. Por isso, para mostrar que o texto não era meu, mas sim do renomado estudioso e pesquisador, incluí a seguinte nota de rodapé:
Emilio Mira y López na sua obra 'Quatro gigantes da alma' identifica cada gigante por uma cor característica: o medo é negro, a ira é rubra, o amor é róseo e o dever incolor.
39 países
Parece que os leitores perceberam que se tratava de uma associação metafórica. Nunca mais fizeram críticas. Se voltassem a fazer, eu não mexeria no texto, pois o que fiz, na minha opinião, não tinha nada a ver com racismo.
Esse livro chegou agora na 112ª edição, com 700 mil exemplares, permaneceu por 3,5 anos nas listas dos mais vendidos e está em 39 países.
O segundo susto se deu quando escrevi o livro "Conquistar e influenciar para se dar bem com as pessoas". Também sucesso de vendas no Brasil, Portugal e Itália. Ao enviar os originais à editora, a profissional responsável pela revisão chamou a atenção para o fato de que talvez fosse melhor fazer uma modificação.
Gentilezas
No capítulo "É hora de ser gentil", em determinado momento falo sobre a atitude de o homem abrir a porta do carro para a mulher entrar. A revisora alertou para o fato de ser esta uma atitude machista. Por isso, resolvi fazer uma rápida pesquisa junto às executivas que frequentam em grande número o nosso curso.
Como imaginei, todas, sem exceção, disseram que gostavam muito dessa gentileza. Percebi que se retirasse a informação do texto estaria contemplando apenas pouquíssimas pessoas. O capítulo continuou como estava. Só fiz uma ressalva.
Explicação complementar
Complementei dizendo que, como o tema provoca debates, se o leitor for homem, e perceber que a mulher que o acompanha vê essas gentilezas como uma atitude machista, seja gentil e faça a vontade dela: nada de cavalheirismo.
Foram esses dois casos os mais gritantes. Não mudei o texto, mas fiz um comentário complementar. Vejo assim esse tema. Se, por acaso, as editoras julgarem que a informação confronta o politicamente correto, talvez pudessem explicar o fato sem alterar o livro.
Nota de rodapé
Uma nota de rodapé poderá contornar a situação, sem violentar o texto do autor e sem deixar de esclarecer que existe essa preocupação. Considero esse um bom recurso para fazer com que as pessoas saibam como a sociedade tratava essas questões na época em que os livros foram publicados.
Alterar o texto de autores, como Monteiro Lobato e Shakespeare, por exemplo, só para contentar aqueles que desejam ver o mundo sanitizado, além de ser uma intromissão violenta, parece ser também demonstração de arrogância presunçosa.
Superdicas da semana
- Uma obra literária, como toda obra de arte, tem um valor intrínseco, coeso.
- Uma obra literária deixa transparecer nuanças de um tempo específico, próprio.
- Uma obra literária provoca um movimento de reflexão e contraste com o momento que vivemos.
- Toda e qualquer alteração pode corrompê-la e/ou alterá-la.
Livros de minha autoria que ajudam a refletir sobre esse tema: "Como Falar Corretamente e sem Inibições", "Conquistar e influenciar para se dar bem com as pessoas", "Comunicação a Distância", "Saiba Dizer Não", "Os Segredos da Boa Comunicação no Mundo Corporativo" e "Oratória para Advogados", publicados pela Editora Saraiva. "29 Minutos para Falar Bem em Público", publicado pela Editora Sextante. "Oratória para Líderes Religiosos", publicado pela Editora Planeta.
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