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Carlos Juliano Barros

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Na pandemia, home office pode ter virado um BBB e você estar sendo espiado

Funcionários nem sempre sabem da existência de softwares de monitoramento em seus computadores - Marcelo Camargo/Agência Brasil
Funcionários nem sempre sabem da existência de softwares de monitoramento em seus computadores Imagem: Marcelo Camargo/Agência Brasil

01/03/2021 04h00

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Muita gente comemorou a oportunidade de fazer home office na pandemia. De fato, parar de perder tempo no trânsito e ficar mais perto da família parecem recompensas tentadoras. Porém, nem todo mundo contava com a possibilidade de levar, além do serviço, o próprio chefe para casa.

Se você ainda é um dos 7,3 milhões de brasileiros trabalhando de forma remota e nunca ouviu falar de softwares como Time Doctor, InterGuard ou Teramind, acredite: sua performance pode estar sendo vigiada de forma mais eficaz na sua sala de jantar do que no próprio escritório da empresa. E não para por aí: uma avalanche de dados sobre sua produtividade, que você sequer sabia que existia, talvez determine seu futuro no mercado de trabalho.

Uma pesquisa divulgada em janeiro de 2019 pela Accenture, a maior consultoria de gestão do mundo, mostrou que 62% das principais corporações globais já utilizavam alguma ferramenta digital para monitorar o desempenho dos funcionários. Porém, menos de um terço dos executivos de alta patente entrevistados diziam ter certeza de que os dados capturados eram usados de maneira "responsável" - seja lá o que isso queira dizer.

Com a pandemia, o mercado de monitoramento de trabalho remoto bombou. Segundo a própria Time Doctor, uma das líderes nesse segmento, a procura pelas soluções da empresa simplesmente triplicou desde que o coronavírus varreu o planeta.

Afinal, o que fazem esses programas? De tudo um pouco. Tiram print da tela do computador, detectam equipamentos externos conectados à máquina, calculam quanto tempo os funcionários gastam no bate-papo e mapeiam os sites acessados por eles. Mas, principalmente, fazem relatórios sobre a produtividade da equipe.

Parece legítimo - e até necessário - que empresas evitem que seus funcionários se distraiam em redes sociais ou vazem informações confidenciais. Ainda mais trabalhando à distância. Além disso, dispor de uma ferramenta capaz de mensurar quanto cada empregado produz realmente vale ouro para um gestor.

A mesma pesquisa da Accenture revelou que 92% dos trabalhadores entrevistados se diziam favoráveis à coleta de dados durante o expediente, desde que isso incrementasse a produtividade e, obviamente, resultasse em algum benefício.

À primeira vista, levantar ressalvas a esses programas soa como procurar pelo em ovo - mimimi de quem não gosta de trabalhar ou, pior ainda, tem algo a esconder.

Só que softwares de monitoramento de trabalho talvez sejam a expressão mais bem acabada do chamado "capitalismo de vigilância". O conceito é de autoria de Shoshana Zuboff, professora de Harvard e fonte de "O Dilema das Redes". Sucesso da Netflix, o documentário disseca as estratégias das chamadas big techs para garimpar dados de usuários com o objetivo de influenciar o comportamento das pessoas - muitas vezes, na surdina.

No caso das ferramentas de monitoramento de trabalho remoto, não é raro que um funcionário sequer saiba da existência do software na máquina que ele usa diariamente. Até porque um programa desse tipo é desenvolvido para passar despercebido, como atesta o próprio site do InterGuard: "O programa não é detectável pelos equipamentos dos empregados, portanto, não há forma de eles saberem, a não ser que sejam alertados".

O publicitário e programador Fabricio Barili vem estudando em um mestrado na Unisinos, do Rio Grande do Sul, como operam essas ferramentas. "Eu fui minha própria cobaia", conta. Barili confirma que sua máquina realmente não acusou o funcionamento dos programas. E se diz particularmente impressionado com uma funcionalidade específica oferecida por um dos softwares.

"Eu pude ativar o microfone do computador. E é o som ambiente, não é o som que está sendo executado na própria máquina, como se eu estivesse reproduzindo um áudio ou um vídeo", afirma Barili. Ele aventa uma hipótese: "Sem eu perceber, o meu chefe pode ativar o microfone e ir coletando tudo o que está se passando na minha casa".

Os desenvolvedores dos programas garantem que não avançam sobre a privacidade dos funcionários. No entanto, quando o ambiente de trabalho se confunde com o de casa, como é possível estabelecer um limite e impedir que a vida de um subordinado se transforme em uma espécie de BBB?

Imagine outro exemplo: uma funcionária fazendo busca na internet sobre testes de gravidez. É desnecessário dizer que mulheres sofrem todo tipo de pressão para retardar - ou até mesmo cancelar - a maternidade, em nome da empregabilidade. Se a maior parte dos executivos não pode assegurar que a coleta de dados de seus empregados é feita de maneira "responsável", o risco de a nossa personagem hipotética ser prejudicada por uma simples pesquisa na internet não é nada desprezível.

O sociólogo Sérgio Amadeu, professor da Universidade Federal do ABC, chama atenção para outro desdobramento digno de um episódio de Black Mirror - a série britânica célebre por suas distopias tecnológicas.

As informações coletadas por esses softwares podem abastecer as bases de dados de outros programas, desenhados para avaliar e selecionar currículos. E aí vale tudo: de indicadores aparentemente banais, como a velocidade da digitação e o tempo gasto em uma ligação, a parâmetros mais refinados - como capacidade de concentração.

"Hoje tem uma enorme quantidade de sistemas algorítmicos fazendo projeções estatísticas, trabalhando no campo da probabilidade e construindo um futuro que pode nunca ocorrer, mas que é performativo porque pode gerar efeito agora", explica Amadeu. "E um dos efeitos é fazer você perder uma vaga de emprego ou fazer você perder o próprio emprego", acrescenta o professor.

Regulamentar o uso dessas plataformas é um desafio e tanto. Primeiro porque startups, de forma geral, têm em seu DNA uma certa alergia a qualquer tipo de regramento. Além disso, a tecnologia tende a avançar em ritmo bem mais rápido do que as leis. Logo, é possível que legislações nesse sentido já nasçam ultrapassadas. Porém, com a ampliação do trabalho em home office, é inevitável que o tema ganhe espaço nos parlamentos e na Justiça num futuro não muito distante.

*Esta coluna é um espaço para debater o mundo do trabalho. Sugestões de pauta são bem-vindas!