Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Quem tem culpa pelo trabalho escravo em casos como o das vinícolas do RS?
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Em 2004, o então senador pelo Tocantins João Ribeiro fez um discurso "memorável" (com muitas aspas aí) para explicar o resgate de trabalhadores em condições análogas às de escravo numa fazenda de sua propriedade, no sul do Pará.
"Senhores fiscais do trabalho, complacência para com aqueles homens rudes do campo que ainda não se adaptaram aos novos tempos", pediu, nas tribunas do Congresso.
Na semana passada, o vereador Sandro Fantinel, de Caxias do Sul (RS), obteve a façanha de superar o ex-senador ao comentar o caso dos 207 trabalhadores da Bahia recrutados para vinícolas gaúchas.
"Agora o patrão vai ter que pagar empregada para fazer a limpeza todo dia para os 'bonitos' também? Temos que botar eles em hotel cinco estrelas para não ter problema com o Ministério do Trabalho?", vociferou Fantinel do palanque.
E ele não parou por aí: "Não contratem mais aquela gente lá de cima", recomendou o vereador, que agora enfrenta um processo de cassação na Câmara Municipal.
"A culpa é dos trabalhadores"
Como se vê, não é de hoje que, na tentativa de justificar o injustificável, empresários e políticos transferem a responsabilidade da escravidão para os próprios escravizados.
Em ambos os casos, separados por duas décadas, a estratégia é a mesma: desqualificar os trabalhadores, tachando-os de brutos, incompetentes ou vagabundos, como se fossem merecedores da exploração de que são, é sempre bom lembrar, vítimas.
"A culpa é da terceirizada"
Há um segundo argumento bastante comum em episódios como esse: a responsabilidade caberia tão somente à terceirizada — afinal, é ela quem recruta os trabalhadores.
Por sinal, essa foi uma das explicações apresentadas pelo Centro da Indústria, Comércio e Serviços de Bento Gonçalves (RS), em nota publicada na semana passada.
"É de entendimento comum que as vinícolas envolvidas no caso desconheciam as práticas da empresa prestadora de serviço sob investigação e jamais seriam coniventes com tal situação", afirma o texto.
No entanto, ainda que a Reforma Trabalhista de 2017 tenha escancarado as portas para a terceirização, as "tomadoras finais do serviço" — como são chamadas as empresas que contratam as terceirizadas — têm obrigação, sim, de zelar pelas condições de trabalho e podem ser cobradas na Justiça por isso.
Quando ocorrem infrações comuns, a responsabilidade é "subsidiária". Isso quer dizer que, se um trabalhador se sentir prejudicado, ele precisa primeiro acionar a terceirizada na Justiça. Caso ela não consiga arcar com eventuais condenações, só então a tomadora final pode ser responsabilizada.
Porém, quando se comprova o trabalho escravo, a responsabilidade passa a ser "solidária", explica Tiago Cavalcanti, procurador do Ministério Público do Trabalho (MPT). Ou seja, nessas situações, as tomadoras finais podem ser acionadas junto com as terceirizadas.
"O trabalho escravo revela um padrão de violação a direitos em níveis gravíssimos, de maneira que, em regra, a empresa prestadora dos serviços não atende aos parâmetros e requisitos estabelecidos pela lei para celebrar contratos de prestação de serviços, tornando a terceirização ilícita e, com isso, deslocando a responsabilidade direta para a tomadora", explica Cavalcanti.
"A culpa é dos fiscais"
Uma terceira alegação muito ouvida em ocorrências como o das vinícolas gaúchas é de que tudo não passaria de exagero das autoridades competentes.
Em audiência na Câmara no ano passado, por exemplo, o deputado federal ruralista Evair de Melo (PP) discursou após uma série de operações em fazendas de café no Espírito Santo, seu reduto eleitoral:
"Nós precisamos, sim, rever o poder desses tais fiscais do Ministério do Trabalho, que todo dia inventam uma norma nova, inventam uma regra nova. Nada está bom, nada presta para eles."
O fato é que a fiscalização do Trabalho ainda sofre com uma crise severa, fruto de um verdadeiro desmonte causado pela não realização de concursos públicos e pelo corte de verbas nos últimos anos.
"Atualmente, nós vivemos uma realidade que nos impõe o pior cenário numérico de auditores fiscais do trabalho em atividade dos últimos 30 anos. Mais de 50% dos cargos estão vagos", afirma Carlos Silva, vice-presidente do Sinait, o sindicato da categoria.
"Nós também tivemos um ataque brutal ao orçamento da fiscalização do trabalho. Em 2020, comparado a 2019, nós sofremos uma redução de mais de 60% do orçamento", acrescenta Silva.
Há quem queira fazer ginástica mental para transferir a responsabilidade para trabalhadores, empresas terceirizadas e autoridades competentes em casos de flagrantes desrespeito à dignidade humana.
Mas nada altera uma constatação objetiva: as empresas têm a responsabilidade legal e ética de cuidar de seus funcionários, mesmo que não diretos, assim como fazem com o marketing de suas marcas.
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