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Carlos Juliano Barros

REPORTAGEM

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Brasil precisa regulamentar 'direito à desconexão', diz ministro do TST

"A nossa legislação é muito falha", afirma o ministro do TST Augusto César Leite de Carvalho sobre o "direito à desconexão" - Divulgação
"A nossa legislação é muito falha", afirma o ministro do TST Augusto César Leite de Carvalho sobre o "direito à desconexão" Imagem: Divulgação

06/06/2023 04h00

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O chamado "direito à desconexão" — a garantia de não ser incomodado depois do expediente por mensagens do chefe no celular ou no computador — é hoje um dos grandes temas do mundo do trabalho.

Em países da Europa e da América Latina, já existem legislações específicas para coibir essa prática. Mas o mesmo ainda não se pode dizer do Brasil.

No Congresso Nacional, um projeto de lei sobre o tema até chegou a ser apresentado em agosto de 2020 pelo senador Fabiano Contarato (PT-ES). No entanto, o texto ainda não foi votado e continua em tramitação.

"É importante que você tenha uma regra que deixe claro para a sociedade que não pode haver essa cobrança abusiva, para além daquilo que seria a jornada de trabalho", diz Augusto César Leite de Carvalho, um dos 27 ministros do Tribunal Superior do Trabalho (TST), instância máxima da Justiça trabalhista.

Em entrevista exclusiva à coluna, o ministro avalia que a Reforma Trabalhista de 2017 não deu conta do direito à desconexão. "Aquilo que diz respeito à privacidade do trabalhador, à privacidade da família do trabalhador: tem muita matéria a ser regulada. A gente precisa dessa legislação", avalia Carvalho.

Confira abaixo a íntegra da entrevista.

O que a nossa atual legislação trabalhista diz sobre o direito à desconexão?

A nossa lei trabalhista não trata especificamente do direito à desconexão. Mas ela tem dispositivos que, ao tratarem da jornada de trabalho, se aplicam àquilo que poderia significar uma consequência jurídica do fato de o trabalhador estar além daquela jornada normal que ele está empreendendo na empresa.

O problema não é ele estar usando um aparelho celular, um tablet, enfim, qualquer dispositivo que o faça acessível para o empregador. Mas é aquela situação de expectativa, de imaginar-se disponível. E, infelizmente, a gente sabe que é rigorosamente o que acontece. Porque a tecnologia da informação e da comunicação hoje permite que o trabalhador possa ser demandado em qualquer situação, a qualquer hora.

E, às vezes, por descuido ou por indiferença a esse cuidado que se deve ter com o tempo de descanso do trabalhador, há essa comunicação na hora em que o trabalhador está em casa, convivendo com sua família, com os seus amigos, na atividade de lazer.

O senhor vê essa discussão mais amadurecida em outros países?

Eu vejo mais amadurecida porque alguns países já têm regulações específicas. Então, em Portugal você já tem.

Alguns países da América do Sul já têm legislação sobre o tema. Então, são países em que já se avançou no sentido de deixar claro que há um limite para essa comunicação.

Quer dizer: o diálogo que se estabelece por mensagem, seja de qualquer rede social, entre empregado e empregador, é sempre uma demanda de serviço. Aí, portanto, tem que ter um limite. A partir de determinada hora, não há possibilidade de o trabalhador ser acionado. Em alguns casos, inclusive, o sistema de conexão deve ser desativado durante esse período, para que não haja a menor possibilidade de o trabalhador receber qualquer demanda.

O Congresso Nacional deveria regular melhor esse assunto?

Eu acho que sim e explico o porquê. Muito do que esse mundo tecnológico apresenta para nós como novidade, se você for olhar bem, a nossa legislação já contempla — mas num nível de abstração maior.

Quer dizer, está estabelecida tanto na Constituição, quanto na lei, na CLT [Consolidação das Leis do Trabalho], uma jornada máxima.

Então, se você combinar esses dispositivos, você conclui que até o direito à desconexão estaria de alguma forma contemplado. Mas está num tal nível de abstração que você não vê na lei propriamente o dispositivo legal fazendo referência explícita ao direito à desconexão.

Então, é importante que você tenha uma regra que deixe claro para a sociedade que não pode haver essa cobrança abusiva, para além daquilo que seria a jornada de trabalho.

A Reforma Trabalhista foi feita sob o argumento de modernização da legislação. E o teletrabalho, que talvez seja o ápice dessa modernização, não foi devidamente contemplado.

A nossa legislação é muito falha. Aquilo que aconteceu em 2017 não foi eficaz. Nós precisávamos, sim, de uma legislação sobre o tema do teletrabalho. Era urgente. Era preciso que nós modernizássemos a nossa legislação. Aí você vai lá na CLT, que foi modificado, o artigo 75 A, que vai definir o que é teletrabalho.

Você pega a legislação portuguesa, a legislação espanhola, ela vem dizendo qual é obrigação do empregador em relação aos equipamentos, em relação à possibilidade de o empregador fiscalizar o ambiente de home office. Porque ele [o empregado] pode eventualmente estar trabalhando em condições não ergonômicas. E aí o empregador vai ser responsabilizado. Aquilo que diz respeito à privacidade do trabalhador, à privacidade da família do trabalhador: tem muita matéria a ser regulada. A gente precisa dessa legislação. E não fizeram nada.

Bastava terem copiado. Se tivessem copiado o que já existia mundo afora, o que já existe em Portugal, em países europeus? Isso sim é modernizar as nossas relações de trabalho.

Como a Justiça do Trabalho vem sendo impactada por esse tema? Há muitas ações de pessoas reclamando o direito à desconexão?

Na Reforma Trabalhista, a pretexto de regular o teletrabalho, eles incluíram lá um inciso no artigo 62, dizendo que o trabalhador que presta serviço em teletrabalho não tem direito a hora-extra, [não tem direito] a nada que diga respeito à limitação de jornada.

Isso, evidentemente, teve uma reação enérgica. Porque é uma bobagem você imaginar que o teletrabalhador está imune a qualquer controle de jornada. Qualquer criança sabe que o tempo de conexão é perfeitamente mensurável, controlável. Então, é evidente que se o trabalhador está prestando serviço para além das 8 horas [diárias] do limite constitucional, das 44 horas semanais, ele está prestando hora-extra. A Constituição diz que tem que pagar. Não adianta o legislador dizer o contrário. Mas, no ano passado, modificaram para dizer que o trabalhador teria direito, sim, a essa remuneração de horas extraordinárias, salvo se ele estivesse trabalhando por produção.

O que eu poderia dizer é o seguinte: na jurisprudência [nas decisões] dos Tribunais Regionais do Trabalho, há um avanço muito significativo no sentido de que o antigo artigo 62 foi modificado porque estava errado mesmo. Quer dizer, se o teletrabalhador presta serviço para além da jornada normal, ele tem direito.

Mas nenhuma alusão, como a gente já viu, ao direito à desconexão propriamente. Porque isso vai além da existência de controle. É o trabalhador que fica naquela perspectiva de a qualquer momento ser demandado, de se sentir obrigado a dar uma resposta. Quer dizer, ele não tem o tempo absoluto de descanso, de relaxamento. E isso é absolutamente fundamental.