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Opinião

Em 2024, você vai aderir ao culto do trabalho duro ou apenas procrastinar?

Quem acompanha esta coluna já deve ter reparado que um dos temas prediletos por aqui é o debate sobre o culto ao trabalho duro. Em uma dessas típicas reflexões de passagem de ano, por exemplo, já discutimos a chamada neurose da excelência. A compulsão de ser e parecer bom o tempo todo no ambiente profissional frequentemente descamba para um narcisismo exacerbado e, não raro, vira fonte de sofrimento quando alguma frustração acontece.

Antes disso, havíamos passeado por esse mesmo assunto em um artigo sobre o tangping. O movimento dos jovens da China que se fotografam deitados nas redes sociais, em um despretensioso protesto contra o regime 9-9-6, vem colocando no divã uma geração inteira que já não vislumbra como ideal de vida pegar no batente das 9 da manhã às 9 da noite, seis dias por semana.

Enquanto o ano não engrena neste início de 2024, o tema do culto ao trabalho volta à tona nesta coluna, embalado por uma dica de leitura: o romance Oblómov, de Ivan Gontcharóv, clássico da literatura russa do século XIX.

Aí vai um breve resumo, sem spoilers sobre o final: a trama é batizada com o nome do protagonista, um nobre que, apesar de relativamente jovem, passa os dias deitado em sua cama, arranjando as mais esfarrapadas desculpas para não fazer absolutamente nada.

É possível interpretar Oblómov sob os mais variados prismas. O mais óbvio deles é encarar a narrativa como uma crítica à decadente aristocracia russa que, seis décadas após a publicação do livro, seria varrida da cena política pela revolução bolchevique de 1917.

Não por coincidência, um dos principais mitos da União Soviética — Alexei Stakhanov — representa a antítese perfeita de Oblómov. Na década de 1930, Stakhanov extraiu em um só turno mais de 100 toneladas de carvão de uma mina na Ucrânia, produtividade 14 vezes superior à média de seus colegas. Homenageado por Stálin e alçado ao status de operário-modelo, ele seria transformado em ícone da nova sociedade criada pelo regime soviético alicerçado, claro, no culto ao trabalho duro.

Mas voltemos a Oblómov. Curiosamente, a caricatura do nobre indolente e procrastinador também acabou dando vazão a uma defesa do direito à preguiça. Nesse sentido, o livro também pode ser compreendido como uma reação a uma espécie de "ditadura da produtividade", um dos pilares da chamada Modernidade (com M maiúsculo), que já dava as caras pela Rússia na época em que Gontcharóv escreveu seu romance.

A história gira em torno do profundo incômodo de Oblómov com as pressões sociais para administrar bem seus negócios, gozar do seu dinheiro viajando pelo mundo e celebrar um casamento de pompa com a jovem Olga. Como se vê, nada muito diferente do que se espera de uma pessoa supostamente bem sucedida nos dias de hoje.

No livro, a letargia do protagonista é elevada à última potência, até para gerar um efeito cômico. Só que a realidade se mostra trágica: Oblómov não consegue cumprir o que se espera dele e se sabota o tempo todo, chegando ao cúmulo da paralisia. Aí se revela, novamente, a universalidade da obra: afinal, quem nunca entrou em um círculo vicioso semelhante?

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O desafio de ler Oblómov, para além de suas mais de 600 páginas, é não sucumbir à tentação de enquadrá-lo apressadamente em visões polarizadas, tão comuns atualmente.

Ele não pode ser reduzido ao mero estigma do homem acomodado, como fariam os coaches motivacionais que vendem receitas de bolo para o sucesso. Mas tampouco deve ser exaltado como símbolo de uma idílica resistência, como querem os críticos do produtivismo capitalista que tão caro cobra de nossa saúde mental no dia a dia.

No fim das contas, Oblómov é só uma pessoa com um pouco mais de dificuldade do que a média de lidar com suas angústias e limitações. Vestir a carapuça do eterno procrastinador, como faz o protagonista, certamente não traz alívio.

Por outro lado, render-se ao culto ao trabalho duro e às suas intermináveis cobranças por uma melhor "performance" também pode gerar bastante sofrimento — físico e psicológico. Um meio do caminho há de existir neste ano que ainda engatinha.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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