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José Paulo Kupfer

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Bolsonaro podia ter evitado alta da fome, assim como de mortes na pandemia

15/09/2022 09h01

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Já se sabia desde junho que 33 milhões de brasileiros, o equivalente a 15,5% da população, enfrentam, em 2022, situação de fome. Também já era sabido que quase 60% da população, um contingente de 125 milhões de pessoas, vive em insegurança alimentar de algum nível — do temor de faltar comida no futuro à fome cruel no dia a dia.

O que se ficou sabendo nesta quarta-feira (14) é que a insegurança alimentar e a fome estão mais presentes nas casas com crianças até dez anos. Enquanto a média nacional geral aponta que 30,7% de todos os domicílios enfrentam insegurança alimentar moderada ou grave — se não há falta de comida na mesa, a quantidade e a qualidade das refeições são insuficientes —, nos domicílios com crianças, o percentual sobe a 37,8%.

Estes são resultados da segunda etapa da divulgação de dados do Vigisan (Inquérito Nacional sobre Segurança Alimentar no Contexto da Pandemia Covid-19 no Brasil). A pesquisa, conduzida pela Rede Penssan (Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional), visitou 12,7 mil domicílios, em 577 municípios, nos 26 estados e Distrito Federal, foi realizada entre novembro de 2021 e abril de 2021.

Levantamento semelhante já havia sido realizado em 2020, permitindo constatar que a situação da fome e da insegurança alimentar no Brasil piorou muito em apenas um ano. Em 2020, 19 milhões de pessoas, 9% da população passava fome. Entre um ano e outro, houve um aumento de 14 milhões de brasileiros no contingente que passa fome.

O que leva à fome é uma combinação de fatores. Primeiro, o desemprego, com redução ou perda de renda. Depois, a inflação, quando principalmente encarece os preços de alimentos, como ocorre no país há mais de um ano e ainda não foi contida, dificultando o acesso a uma dieta alimentar satisfatória. A esses fatores se juntam diversos outros, inclusive a insuficiência ou a inexistência de políticas e programas que assegurem o acesso à comida aos pobres e, sobretudo, aos extremamente pobres.

Com a pandemia, a economia enfrentou colapsos e o desemprego chegou a picos de quase 15% da força de trabalho. Também a pandemia desorganizou as cadeias de produção, cortou suprimentos e aumentou custos de produção, insuflando a alta de preços.

Depois, a guerra na Ucrânia, prejudicando a circulação internacional de grãos e fertilizantes, além de provocar altas nas cotações do petróleo, potencializou as barreiras à aquisição de dieta alimentar suficiente por famílias vulneráveis. No caso do Brasil, ainda houve uma crise hídrica em 2021 que também complicou a produção, elevou custos e encareceu a aquisição de comida.

Tudo isso é verdade, mas também é verdade que o governo do presidente Jair Bolsonaro não pode fugir das responsabilidades diante do alastramento da fome, assim como não pode no caso de muitas das mortes na pandemia de covid-19. Na pandemia, Bolsonaro liderou o negacionismo em relação às consequências da doença, insistiu em tratamentos ineficientes, e dificultou o bom andamento da vacinação. O resultado foram disseminação do contágio e centenas de milhares de mortes que, segundo especialistas, poderiam ter sido evitadas, se outros fossem os procedimentos oficiais.

No caso do alastramento da fome e da insegurança alimentar, Bolsonaro completou o desmonte iniciado no governo de Michel Temer da rede de proteção alimentar erguida no país, por diversos governos, em mais de 40 anos de esforços no combate à fome. Mirou no agronegócio exportador e relegou a agricultura familiar, que garante a produção de comida para consumo interno.

Reduziram-se a praticamente zero, no governo Bolsonaro, os estoques reguladores de alimentos, gerenciados pela Conab (Companhia Nacional de Abastecimento). Enquanto outros países exportadores, diante da pressão da demanda mundial, preservaram parte da produção para consumo doméstico, o Brasil não seguiu o mesmo caminho. Um exemplo é o arroz: os preços avançaram mais de 50% em 2020, ao mesmo em que aumentavam as exportações para, por exemplo, a Venezuela, tão criticada por Bolsonaro.

O PAA (Plano de Aquisição de Alimentos), que garantia estímulos à produção da agricultura familiar, e já vinha perdendo recursos, foi deixado de lado no atual governo, até sua substituição em 2021 pelo programa Alimenta Brasil, sem resultados conhecidos. Não foi diferente com o PNAE (Plano Nacional de Alimentação Escolar), criado há quase 70 anos, e revitalizado em 2003. O programa de merenda escolar, importante no combate à fome entre crianças, está com os valores de repasse a estados e municípios congelados há cinco anos — o repasse, para o ensino fundamental, não chega hoje a R$ 0,40 para cada aluno por refeição.

Até mesmo o Auxílio Brasil, o programa de transferência de renda de Bolsonaro, não está cumprindo com eficácia o papel de sustentar a ingestão suficiente de alimentos pelos beneficiários. Em abril deste ano, quando o Auxílio Brasil era de R$ 400 mensais e ainda não tinha sido aumentado para R$ 600, pelo menos um em cada cinco domicílios em que há beneficiários do Auxílio Brasil apresentava situação de fome, conforme constatou a pesquisa da Rede Penssan.

Desenhado para beneficiar famílias, independentemente de seu tamanho, o Auxílio Brasil estimulou a inscrição em separado de membros de famílias elegíveis. O resultado, apontado pela ex-ministra Tereza Campello, que comandou o ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, no governo de Dilma Rousseff, tem sido uma multiplicação fora de qualquer base lógica de "famílias" de uma só pessoa. Afetado por programas mal formulados, Cadastro Único, crucial para a formulação de políticas sociais eficientes, tem sofrido crescente desvirtuamento.

Segundo levantamentos da ex-ministra, no governo Bolsonaro, o número de pessoas morando sozinhas, na maioria homens, inscritos no Cadastro Único, aumentou 172%, de 1,8 milhão, em dezembro de 2018, para 4,9 milhões, em agosto de 2022. Já o número de famílias com mais de duas pessoas, na maioria com crianças, cresceu apenas 25%, no mesmo período, de 12,2 milhões para 15,3 milhões, também entre fins de 2018 e agosto de 2022.

O resumo dessa história do alastramento da fome na população não pode escapar da constatação de que, apesar da pandemia, da guerra na Ucrânia e de outros fatores adversos, que afetaram não só o Brasil, Bolsonaro e seu governo, assim como nas mortes por covid-19, poderiam ter agido para evitar o pior que aconteceu.