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José Paulo Kupfer

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Lula sinaliza que não irá ajoelhar no milho e pedir licença ao mercado

11/11/2022 12h06

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A lua de mel do mercado de ativos financeiros com o futuro governo Lula mal durou dez dias. Nesta quinta-feira (10), Lula e o mercado partiram para uma queda de braços, com os pregões derretendo depois de um discurso considerado radical do presidente eleito.

Falando para uma plateia de políticos de partidos aliados, na sede do governo de transição, em Brasília, Lula deixou entender que daria prioridade aos gastos e não ao controle de despesas. Acrescentou, com isso, mais algumas incertezas sobre a condução da política econômica e levou o mercado a um estresse.

O Ibovespa, principal índice da Bolsa despencou 3,35%, a cotação do dólar saltou 4%, chegando a R$ 5,40 e os juros subiram rápido e forte, expressando sensação de aumento de riscos fiscais. Mas já na manhã desta sexta-feira (11), os pregões pareciam trilhar o caminho da recuperação das perdas do dia anterior. Por volta das 11 horas, o Ibovespa avançava 1% e a cotação do dólar recuava pouco mais de 1%, com o real valendo R$ 5,28. A Bolsa fechou em alta de 2,26% e o dólar encerrou o dia a R$ 5,334.

Difícil imaginar que Lula, com sua vasta experiência política, não tenha decidido testar reações, lançando uma isca para medir limites — esses limites, na prática, bom não esquecer, são aqueles que serão fixados na PEC (Proposta de Emenda à Constituição) da Transição. O presidente eleito não escondeu essa intenção ao afirmar, de um jeito irônico, que "o mercado fica nervoso à toa".

Da queda de braço entre Lula e o mercado restarão lições. Uma delas é que é bom ir desacostumando do que valia até agora porque Lula não terá um "Posto Ipiranga" na economia — são claras as indicações de que, qualquer que seja o ministro da Fazenda, será ele mesmo, Lula, em última instância, o condutor da política econômica. Outra é que Lula considera que, depois de seus dois mandatos, em que superávits fiscais foram a regra, não precisa mais se ajoelhar no milho e pedir licença ao mercado para governar, como teve de fazer, com a "Carta aos brasileiros", em 2002.

Uma terceira lição é a de que a regra de convivência do mercado com Lula será a da desconfiança. O presidente eleito, que pode ser tudo menos ingênuo, sabe que seu relacionamento com representantes e influenciadores do mercado nunca será pacífico. Basta observar as ressalvas levantadas logo após o discurso "à esquerda" por Armínio Fraga e Elena Landau, apoiadores liberais de última hora da candidatura de Lula.

São, enfim, tempos e situações diferentes daqueles que prevaleciam em 2002, quando Lula chegou à presidência pela primeira vez. A arquitetura montada para o período de transição é, desde logo, boa comprovação inicial de que a história, no terceiro mandato, não será a mesma dos anteriores.

Sob o comando do presidente eleito Lula, e refletindo a frente ampla que apoiou sua candidatura, a transição se transformou num inédito experimento de gestão participativa. Uma das novidades é o protagonismo assumido pelo vice-presidente eleito, Geraldo Alckmin, nomeado por Lula coordenador da transição. Político experiente, o ex-governador paulista tem cumprido à risca a tarefa de filtrar as indicações para os grupos temáticos e transmitir informações oficiais em entrevistas coletivas a jornalistas.

Abarcando 31 grupos temáticos, a transição ganhou o formato de um grande seminário no qual ideias diversas e propostas variadas, trazidas por especialistas nas áreas específicas, são postas em discussão. Esse objetivo fica claro diante das reiteradas afirmações do próprio Lula e de Alckmin, segundo as quais participar da transição não significa, obrigatoriamente, fazer parte do governo, que tomará posse em 1º de janeiro.

A adoção de um formato desse tipo é possível porque Bolsonaro, recluso desde a abertura das urnas no segundo turno, deixou um vazio político que Lula está procurando preencher o mais rápido possível. Se a transição, pela animosidade e ausência de cooperação de Bolsonaro e de boa parte de seus ministros, caminhava para se tornar um limão, Lula trabalha para transformá-la numa limonada.

Indicativos desse objetivo de manter a iniciativa política são os anúncios diários de nomes para a transição. No lote desta quinta-feira (10), por exemplo, entraram o advogado, professor de Direito e colunista da "Folha de S. Paulo" Silvio Almeida e a jornalista Anielle Franco, irmã da vereadora assassinada Marielle Franco. Almeida integrará o grupo de Direitos Humanos e Anielle, o de políticas para mulheres. Médicos superconhecidos e até midiáticos, como Drauzio Varella e o cardiologista de Lula, Roberto Kalil, colaborarão na formulação de políticas de saúde, no grupo específico coordenado por quatro ex-ministros — Humberto Costa, Arthur Chioro, Alexandre Padilha e José Gomes Temporão.

Chamou ainda mais a atenção a designação do ex-ministro Guido Mantega e de Paulo Bernardo, ex-ministro das Comunicações e ex-marido da presidente do PT, Gleisi Hoffmann, há muito tempo fora dos holofotes. Bernardo fará parte do grupo temático de Comunicações e Mantega, o de planejamento.

Não se limitando aos ocupantes dos 50 cargos previstos em lei, os grupos temáticos estão sendo usados como meio de facilitar a seleção de técnicos para as equipes ministeriais. A transição está funcionando também como uma espécie de departamento de recursos humanos, operando na coleta de nomes para o preenchimento de quadros técnicos no Executivo.

A transição diferente de 2022 também mostra uma configuração conveniente ao conhecido estilo de liderança de Lula. Desde os tempos sindicais no ABC paulista, há mais de 50 anos, Lula exerce um tipo de liderança que estimula o debate entre tendências divergentes, para, no fim do processo, filtrar e arbitrar as propostas que considera mais adequadas.

Em vários dos grupos temáticos essa configuração é visível. Além de um conselhão político com representantes de 13 partidos, incluindo PSD e MDB, que não formaram na frente ampla, há defensores de diferentes linhas de pensamento em todos os grupos. Na assistência social, por exemplo, Simone Tebet, a candidata à presidência pelo MDB, oriunda do agronegócio, se senta ao lado de Tereza Campello, especialista experiente em políticas sociais ligada ao PT e ex-ministra do Desenvolvimento Social, no governo Dilma.

É no grupo da economia que o estilo Lula de liderar por arbitragem fica ainda mais claro. Nele foram reunidos quatro reconhecidos economistas, cada um com uma visão própria e diferente das causas e das soluções para os problemas da economia brasileira.

Embora não se possa esquecer as nuances, a tentativa de rotulá-los sempre será inevitavelmente imprecisa. Pérsio Arida e André Lara Resende ocupariam, numa visão convencional, um campo mais ortodoxo, enquanto Nelson Barbosa e Guilherme Mello, tendências mais heterodoxas. Mas Arida e Resende não podem ser acusados de relegar questões sociais a segundo plano, do mesmo modo que Barbosa e Mello não deixam de lado preocupações com o controle da inflação e o equilíbrio das contas públicas. Não há dúvida de que, ainda que com ênfases particulares, responsabilidade fiscal é um ponto em comum entre todos.

Exceto Mello, os demais têm experiência de governo. Mas não se recomenda acreditar que algum deles venha a ser anunciado ministro da Fazenda ou do Planejamento. O cargo, a se acreditar nas palavras do próprio Lula, está reservado a um político com bom trânsito no Congresso, possivelmente ligado ao PT ou próximo do partido. Seu nome só deve ser anunciado depois que as negociações com o Congresso, para aprovação de despesas iniciais fora do teto de gastos, estiverem bem encaminhadas, assim como a formação do bloco de apoio ao novo governo.