Ela dirige guincho, fatura R$ 9 milhões por ano e quer crescer 45% em 2021
Priscila Santos, 36, é uma mulher negra que foi adotada na infância, cresceu no interior do Espírito Santo e se tornou a primeira empresária da família ao criar a Rebocar, que atua há 12 anos no mercado oferecendo serviços de remoção, guarda e leilão de veículos. Hoje, a empresa é líder no estado do Rio de Janeiro e está entre as maiores do Espírito Santo.
Em 2020, o faturamento foi de R$ 9 milhões, mais que o dobro do ano anterior. E a meta para 2021 é ousada: crescer 45%, o que deve acontecer com a expansão do negócio para São Paulo, Minas Gerais e Mato Grosso, segundo a empresária.
Dificuldades em meio masculino
Mas, para chegar até aqui, ela enfrentou muitas dificuldades, principalmente por se tratar de um meio muito masculino.
Já dirigi muito reboque, minha carteira de habilitação é tipo D. Quando precisava, eu ia, com filho e tudo. O pessoal estranhava quando via que era uma mulher, mas comigo não tem tempo ruim, o que precisar no trabalho eu faço.
Priscila Santos
O atendimento aos clientes acontecia mesmo com o estranhamento, mas na hora de fazer negócios, as coisas ficavam mais complicadas para Priscila.
Em muitas reuniões, já fiquei sozinha na sala, porque eram só homens. Eles levantavam e iam embora quando viam que iam tratar com uma mulher. Diziam que mulher não sabe negociar, que não entende o ramo, que fala demais.
Priscila Santos
Fim do casamento abalou negócios
O negócio começou em sociedade com o ex-marido, com quem Priscila se casou aos 18 anos, grávida da primeira filha. O jovem casal se mudou para Guarapari (ES) e, por insistência dela, comprou dois caminhões de reboque que a mulher de um amigo havia herdado.
Para entender a área em que iria atuar, ela procurou seguradoras, com quem fez parcerias antes de participar e vencer licitações do estado.
Naquele momento, eu não tinha dimensão da maldade das pessoas e das dificuldades que iria enfrentar. Mas fui ganhando mercado, a empresa estava crescendo. Até que, quando estávamos no ápice profissionalmente, eu descobri uma traição do meu marido. Como éramos sócios, isso mexeu comigo completamente. Eu tinha 27 anos na época, dois filhos, a vida estava estável, era um casamento que parecia perfeito, fiquei sem chão.
Priscila Santos
Vendeu carro e joias para recuperar empresa
O casamento acabou, e começaram as disputas judiciais pela empresa. Primeiro, eles dividiram os negócios, com cada um em uma cidade. Mas, sem se entender na vida pessoal, começaram os conflitos também em torno da Rebocar.
Por determinação da Justiça, Priscila foi obrigada a se afastar da empresa. Ela vendeu carro e joias para pagar advogado e recuperar o negócio. Quando conseguiu, a empresa estava atolada em dívidas, mas, aos poucos, ela organizou as finanças e se reergueu.
Nesse meio tempo, sofri muito assédio de homens que me pressionaram para sair com eles. Eu atuava só em Guarapari e não tinha ambição, mas, com toda essa situação, não me via mais feliz lá. Resolvi mudar para Vitória com quase nada de dinheiro. Estava sem reboques, fazia assistência para seguradoras.
Priscila Santos
Descrédito e assédio
Nessa fase, uma seguradora apresentou a ela uma oportunidade de atuar no mercado carioca. Ela deixou os dois filhos com o marido por um ano e foi para o Rio de Janeiro. Morando sozinha pela primeira vez, ela achou a cidade muito grande e difícil e esteve prestes a desistir.
Os homens não facilitavam, queriam se relacionar comigo em troca de apoio para minha empresa. Me chamavam de laranja, de forasteira, achavam que eu era herdeira por ser jovem, diziam que devia ter algum político por trás. Foi quase um ano de luta diária.
Priscila Santos
Hoje, ela está consolidada nas praças em que atua e diz que muitas pessoas que colocaram obstáculos para ela já se desculparam pelo prejulgamento e hoje reconhecem que ela entende do negócio.
Em 2020, a Rebocar fez quase 30 mil atendimentos presenciais e digitais. São pessoas que tiveram seus carros apreendidos em operações policiais, ou roubados/furtados e depois recuperados, ou, ainda, pessoas em busca de informações sobre leilões. A empresa tem 150 funcionários, uma frota de mais de 50 caminhões-guincho e realiza de dois a quatro leilões de veículos por mês.
Inspiração para outras mulheres
Tantas dificuldades fizeram de Priscila uma mulher forte e empoderada que inspira outras mulheres pelas redes sociais. No Instagram, ela compartilha belas fotos e mensagens motivacionais com quase 130 mil seguidores.
Eu acredito que todo mundo tenha uma missão, e a minha é ajudar pessoas. Tento ajudar com conhecimento, oportunidades, porque já fui muito desacreditada na minha vida, por muitas pessoas. No início, até eu mesma olhava para aquelas pessoas e não me sentia segura comigo, tinha medo. Até que vi que estava me causando sofrimento. Hoje não preciso provar nada, o mercado está aí para todos, as mulheres estão mostrando sua força, são excelentes profissionais.
Priscila Santos
Mulheres enfrentam desafios específicos ao empreender
Segundo Camila Ribeiro, gestora estadual de empreendedorismo feminino do Sebrae-SP, as experiências vividas por Priscila são comuns a outras empreendedoras.
"A mulher enfrenta vários desafios quando vai empreender e são diferentes dos desafios dos homens. Por exemplo, a falta de autoconfiança. Elas têm dificuldade de se verem empresárias, pois não foram criadas para isso, aspectos culturais determinam que ela deve ser cuidadora da casa e da família. Em um meio muito masculino, é ainda pior, pois preconceitos como achar que mulher não entende de carro minam a autoestima. Isso destrói um grupo de habilidades essenciais, que são as soft skills", afirmou.
As soft skills são habilidades socioemocionais como liderança, comunicação, gerenciamento das emoções, iniciativa e visão de oportunidade —e são tão essenciais aos empreendedores quanto as habilidades gerenciais e técnicas, disse a especialista do Sebrae.
"Não é que a mulher é mais frágil, é que ela passa por questões culturais e históricas que os homens não passaram. Até a década de 60, a mulher precisava de autorização do marido para ter empresa. A discriminação destrói uma mulher, quem está com a autoestima ferida não consegue ter sempre alta performance na gestão. Aí vemos a força feminina, pois, apesar de tudo, elas constroem muitos negócios de sucesso", afirmou a consultora.
Assédios devem ser denunciados
Além de lidar com preconceitos, descrédito e acúmulo de funções, por causa dos cuidados com a família, muitas mulheres ainda têm de lidar com o assédio sexual, como conta Priscila.
Muitas portas se abriram para mim porque tinham interesse na Priscila, a negra bonita. Eu via aquilo e fechava aquela porta, porque não a queria aberta dessa forma. A beleza ajuda, sim, mas eu nunca quis ir por esse lado. Tenho que ser contratada pelo profissionalismo e não pelo lado pessoal ou sexual.
Priscila Santos
Para a consultora do Sebrae, esse é outro desafio comum que as mulheres enfrentam. "As investidas sexuais acontecem mesmo, já ganhamos muitas lutas quanto a isso, mas ainda é uma realidade. E um dos desdobramentos disso é que a mulher fica retraída ao fazer networking, por exemplo. Apesar de serem ótimas em comunicação, elas se sentem desconfortáveis em entregar um cartão de negócios para um homem, por receio de ele interpretar como abertura para algo mais ou até por medo do marido", disse.
Por isso, segundo Camila, é comum elas buscarem grupos de mulheres empreendedoras para se sentirem acolhidas e fortalecidas.
Não baixe a guarda. Não ceda a nenhuma investida sexual para fechar negócios, saber dizer não também é poder. Se a situação te deixar desconfortável, busque ajuda, denuncie, não se cale.
Camila Ribeiro
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