Empresa de bitcoin promete ganho de 2% ao dia; CVM apura possível fraude
"Invista Bitcoin e ganhe de 1% a 2% todos os dias." A frase que você acabou de ler é de uma propaganda da Investimento Bitcoin que tem aparecido em diversos canais de televisão durante o horário nobre e também na internet. Se você achou a proposta tentadora, cuidado: há indícios de problemas. A empresa não revela telefone, endereço ou nome dos donos no site. O UOL descobriu os nomes dos sócios e o endereço registrado pela empresa: é uma casa em bairro periférico de São Bernardo do Campo (SP), onde mora a mãe de um dos supostos sócios da empresa.
Para especialistas, há a possibilidade de que a Investimento Bitcoin seja, na verdade, uma reedição do velho golpe da pirâmide financeira. A CVM (Comissão de Valores Mobiliários) diz em relatório que encontrou "indícios de fraude na captação de recursos de terceiros, com características típicas de pirâmide financeira" e sugeriu ao Ministério Público que investigue as atividades da empresa, segundo divulgou o site Valor Invest. A CVM não liberou o documento ao UOL, que acionou nesta segunda-feira (2) a Lei de Acesso à Informação. Por outro lado, a CVM confirmou a existência de uma investigação sobre a empresa.
"Desconfie de qualquer promessa de investimento que tenha retorno muito alto e garantido. Algo que promete ganho de 2% ao mês ou mais sem risco é uma cascata", disse Michael Viriato, professor do Insper.
No caso da Investimento Bitcoin, a promessa de rendimento é ainda mais ousada, de até 2% ao dia.
Se a propaganda da Investimento Bitcoin fosse realidade, um investidor conseguiria acumular ganhos de mais de 60% em apenas um mês. Em menos de dois meses, seu investimento dobraria de valor.
A empresa afirma ainda na peça publicitária que os rendimentos podem ser sacados diariamente.
A Investimento Bitcoin veiculou propagandas no UOL por meio de uma plataforma de autoatendimento. Quando percebeu o teor dos anúncios, o UOL suspendeu a veiculação das peças publicitárias.
Estrutura típica de pirâmide financeira
A Investimento Bitcoin também promete ganhos extras para quem indicar novos clientes, dentro de um modelo de "marketing multinível". Os ganhos começam em 10% na primeira indicação, 4% na segunda e caem para 1% a partir da quinta indicação.
O marketing multinível, ou marketing de rede, é uma ferramenta legal, usada principalmente por grandes empresas de venda porta-a-porta, como Avon e Natura.
O problema é que algumas empresas mal-intencionadas usam a mesma estrutura, mas sem a comercialização de produtos, apenas com aportes financeiros. Em algum momento, a estrutura não se sustenta mais e a pirâmide desaba.
"No marketing multinível, os ganhos vêm principalmente da venda dos produtos. Nos Estados Unidos há uma regra que estabelece que pelo menos 70% da receita seja proveniente das vendas. Caso contrário, teremos uma pirâmide, ou seja, uma estrutura que é mantida basicamente pelos investimentos feitos pelas novas pessoas que entram no esquema", afirmou Alan De Genaro, professor da FGV (Fundação Getulio Vargas).
Possível crime de estelionato
Se for comprovado que a empresa vendeu investimentos fraudulentos em esquema de pirâmide, os sócios podem responder pelo crime de estelionato, afirma a advogada e professora-doutora de direito penal da USP Helena Lobo da Costa.
Ela afirma que, no estelionato, o autor do crime se beneficia de um pagamento ilegal que obteve depois de enganar a vítima a partir de uma situação irreal. A pena para o estelionato é de até cinco anos de prisão.
Mas, dependendo das circunstâncias, pode existir um crime diferente para cada vítima, o que levaria a uma pena total mais alta. Além disso, pode haver outros delitos simultaneamente, como associação criminosa.
Segundo ela, a lei de crimes contra o sistema financeiro nacional não se aplica a fraudes com criptomoedas, porque elas não são reguladas pelo Banco Central nem pela CVM. Por isso, para esses casos, aplica-se o conhecido artigo 171 do Código Penal, onde está descrita a conduta de estelionato.
"É um exemplo interessante de como o estelionato se moderniza com o tempo: vai desde golpes simples, como o do bilhete premiado, até fraudes mais elaboradas."
Sem telefone, nem endereço
Outro indício de que o suposto investimento se trata de um golpe é a ausência de informações básicas sobre a empresa responsável por cuidar do dinheiro. A Investimento Bitcoin possui um site muito bem feito, mas fornece apenas um email para contato.
O site não traz o endereço nem o telefone da companhia. Também não há informações sobre os nomes dos sócios responsáveis ou o número do CNPJ (Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica) da empresa.
No site Reclame Aqui há 30 queixas de clientes da Investimento Bitcoin. Eles relatam principalmente a dificuldade de contato com a empresa para confirmação dos depósitos realizados.
Suposta sede fica em São Bernardo do Campo
O UOL descobriu os dados da Investimento Bitcoin Brasil LTDA, empresa que supostamente representa a Investimento Bitcoin.com no país. A companhia foi fundada em agosto de 2016 com outro nome: W&T Intermediações de Negócios e Participações Ltda.
Segundo o cadastro, ela pode realizar "atividades de intermediação e agenciamento de serviços e negócios em geral, exceto imobiliários", "marketing direto" e "outras atividades auxiliares dos serviços financeiros não especificadas anteriormente."
Constam como sócios da empresa Wendel Cardoso Cortenove e Eduardo Diego Fiurst Duvoizem.
O endereço que aparece no registro da companhia é de um imóvel residencial em São Bernardo do Campo, região metropolitana de São Paulo.
O UOL esteve no local e encontrou Creusa Cardoso, mãe de Cortenove. Segundo ela, o filho "mexe com TI [tecnologia da informação], mas ele não me conta o que está fazendo. Acho que é alguma coisa com esse tal de bitcoin".
Ela contou ainda que o filho não reside mais no imóvel desde quando casou, há quatro anos, e passa lá apenas ocasionalmente.
De mudança para a avenida Paulista
A reportagem conseguiu conversar por telefone com Cortenove. Segundo ele, a Investimento Bitcoin Brasil está registrada provisoriamente no endereço de sua mãe.
"Estamos abrindo um escritório na avenida Paulista, mas ainda não está pronto", afirmou.
Questionado sobre o endereço exato da nova sede, Cortenove não soube informar. "Fica ali, entre o Hospital Santa Catarina e o Masp. Ainda estamos acertando os detalhes. Em breve teremos um escritório montado."
Matriz fica em Portugal, alega "líder" brasileiro
Wendel Cortenove negou que seja diretor ou o sócio responsável pela Investimento Bitcoin.com.
"Eu sou responsável apenas pela parte de publicidade deles no Brasil. Eu não tomo decisões pela empresa. Sou apenas um dos líderes no Brasil."
Segundo ele, a sede da Investimento Bitcoin.com ficaria em Lisboa, Portugal.
"O presidente da empresa é o Rui Costa. É um executivo com grande experiência com criptomoedas", declarou.
O UOL pediu os contatos de Rui Costa ou de algum outro diretor da Investimento Bitcoin em Portugal, mas Cortenove se recusou a fornecê-los.
"Olha, acho meio difícil. O Rui normalmente só conversa por Skype ou por chamada de vídeo no WhatsApp. Mas, vou falar com ele e tentar colocar vocês em contato."
A reportagem não conseguiu falar com Rui Costa até a conclusão desta matéria.
Primeiro investidor no Brasil
Na conversa que teve com o UOL, Cortenove afirmou que atua desde fevereiro como parceiro publicitário na Investimento Bitcoin.com no Brasil.
"Eles me escolheram porque fui o primeiro investidor deles no Brasil. Coloquei US$ 150 mil."
Porém, ele não soube explicar de forma objetiva como conheceu a Investimento Bitcoin ou como a suposta empresa portuguesa chegou até ele.
"Eu venho mexendo com plataformas de investimento em criptomoedas há alguns anos. Sou da área de engenharia de computação. Fui gerente de TI de uma grande empresa de auditoria aqui no Brasil. Entendo disso [auditoria]. Sei identificar quando uma empresa é séria ou não. Infelizmente, no Brasil, tem muita picaretagem nessa área de criptomoedas."
Questionado novamente sobre o primeiro contato com a Investimento Bitcoin.com, Cortenove disse que foram os portugueses que o procuraram.
"Eu sou um investidor de alto padrão. Essas empresas têm o cadastro da gente, endereço, telefone, têm tudo. Eles sabiam do meu potencial como investidor e precisavam de uma empresa no Brasil para fazer a publicidade aqui. Como eu já tinha uma empresa aberta, eles se interessaram."
Viagem marcada
Ele disse que está de viagem marcada para Portugal para se encontrar com os dirigentes da Investimento Bitcoin.com.
"Vou para lá no dia 11 [de setembro] para acertar alguns detalhes, devo ficar até o dia 18. Quero tratar da regularização da empresa no Brasil. É importante ter uma plataforma de confiança, que atenda a todas as legislações."
Registro na CVM
Questionado sobre quais regularizações pretende tratar com os parceiros portugueses, Cortenove citou "as exigências" da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), órgão que regula o mercado financeiro no Brasil.
"É importante estar com tudo regularizado, atender a CVM. Com a CVM autorizando, a plataforma vai ficar muito mais segura", declarou.
Cortenove ignorou o fato de que a CVM não regula nem fiscaliza o mercado de criptomoedas no Brasil. O órgão do governo apenas emite alertas e investiga casos suspeitos para coibir a prática de fraudes e golpes financeiros nesse mercado. E há uma investigação em curso na CVM sobre a Investimento Bitcoin.com.
"As pessoas não têm a menor ideia do que estão fazendo"
Embora afirme que é responsável apenas pela área de publicidade da Investimento Bitcoin no Brasil, Cortenove demonstrou conhecimento sobre todo o processo de depósito de recursos dos investidores.
Sobre as queixas registradas no site Reclame Aqui, onde clientes relatam demora na confirmação dos depósitos, ele declarou que "as pessoas não têm menor ideia do que estão fazendo".
"O brasileiro precisa de uma aula. Há pessoas que nunca fizeram investimento. Aí elas depositam o valor errado. Em vez de US$ 50, colocam R$ 50. Aí é lógico que vai dar problema."
O site da Investimento Bitcoin.com não deixa claro qual é a moeda adotada como referência para os valores de investimento. Os números aparecem apenas com o símbolo de cifrão na frente ($ 50, por exemplo), sem identificar se o valor seria em dólares (US$ 50), reais (R$ 50), bitcoins ou outra moeda.
"Já falei com eles sobre isso. Esse é um dos problemas que quero resolver com eles na minha viagem a Portugal", disse Cortenove.
Depósito com boleto bancário
Cortenove aproveitou para contar uma novidade ao UOL. O site aceitará em breve depósitos por meio de boleto bancário.
"Hoje, você precisa abrir uma conta numa corretora, comprar os bitcoins e depois transferir para a Investimento Bitcoin. Estamos fechando uma parceria com uma empresa de meios de pagamento para aceitar boletos bancários. Vai ficar bem mais fácil fazer os depósitos."
Ele não deu detalhes sobre como será a conversão dos reais depositados via boleto para bitcoins, uma vez que a Investimento Bitcoin não é uma corretora de criptomoedas.
"Na hora de sacar, a pessoa vai receber em bitcoins. Aí, se quiser converter em reais, ela vai precisar ter conta numa corretora. Isso é necessário para atender a Receita Federal. Assim, não há risco de crime financeiro."
Cortenove se refere à exigência de que todas as movimentações mensais com criptomoedas sejam informadas à Receita Federal. A medida entrou em vigor no início de agosto.
Associações alertam para risco de golpe
O UOL consultou a ABCripto (Associação Brasileira de Criptoeconomia) e a ABCB (Associação Brasileira de Criptomoedas e Blockchain), entidades que reúnem as corretoras e principais empresas que atuam com bitcoins e outras criptomoedas no país.
A Investimento Bitcoin não é associada a nenhuma das duas entidades. Elas também desconhecem quem sejam os sócios da companhia. A ABCripto aproveitou para fazer um alerta sobre o risco de a Investimento Bitcoin representar mais um golpe de pirâmide financeira.
"Assim como acontece no mercado tradicional, no mundo cripto, também existe o componente de volatilidade entre os ativos. Dessa maneira é impossível garantir rentabilidade no curto prazo. Aqueles que fazem isso prestam um desserviço ao segmento", disse a entidade em nota
Bitcoin é o preferido dos golpistas
A falta de uma legislação que permita controlar e fiscalizar a negociação de moedas digitais no país e a grande valorização do bitcoin em um curto período de tempo são fatores que colaboram para que ele sirva de chamariz para os golpistas.
Diversas fraudes envolvendo criptomoedas foram descobertas recentemente no Brasil. Airbit Club, MinerWorld, MMM Brasil e Kriptacoin são alguns dos casos que ficaram famosos no país.
Neste mês, clientes do Grupo Bitcoin Banco foram surpreendidos pelo bloqueio de bens do empresário Claudio Oliveira, conhecido como "rei do bitcoin". Ele estaria devendo mais de R$ 70 milhões aos clientes.
No mundo, há relatos de mais de 7.000 casos de golpes envolvendo o bitcoin e outras moedas digitais, segundo o site badbitcoin.org, especializado em listar as fraudes.
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