A morte de Márcio Thomaz Bastos deixa a oratória mais pobre
Há oradores que se notabilizam pela eloquência, outros pela precisão dos argumentos, outros pela rapidez de raciocínio e presença de espírito. Márcio Thomaz Bastos, morto nesta quinta-feira, possuía um pouco de todos esses atributos. Ao mesmo tempo em que conseguia ser afável nos debates, também chegava a ser cáustico e temível na defesa de suas causas.
Algumas coincidências cruzaram nossas vidas. Nas palestras que faço para os advogados, costumo ilustrar com exemplos práticos a importância do preparo e das tiradas espirituosas no exercício das atividades dos operadores do direito. Em um dos momentos, reproduzo um trecho do julgamento de Lindomar Castilho, ocorrido em agosto de 1984.
Lindomar foi julgado pelo assassinato da sua ex-mulher Eliane de Grammount. A acusação ficou a cargo do promotor Antonio Visconti, com assistência de Thomaz Bastos. Lindomar foi defendido pelo "Príncipe dos Advogados", Waldir Troncoso Perez (1923-2009). Uma verdadeira luta de titãs. Atuou como juiz o presidente do 1º Tribunal do Júri, José Roberto de Almeida.
Embora se esforçasse bastante, Troncoso Perez contava com poucos argumentos em favor do réu. Afinal, Lindomar havia descarregado o revólver na vítima no Bar Belle Époque, na frente de muitas testemunhas. Para se ter uma ideia da dificuldade do trabalho de Troncoso, até a baixa estatura de Lindomar foi destacada como motivo para o crime.
Em determinado momento, Troncoso se vale de um argumento mais robusto, o fato de Lindomar ter doado um imóvel à filha, com usufruto vitalício. O embate entre os dois ícones da oratória judiciária brasileira ficou para a história como um dos mais memoráveis episódios do tribunal do júri.
Troncoso: "No documento pré-fixado por ele quando se separa de Eliane... Quando ele ainda desconfia de Eliane... Ele faz a doação de um apartamento à sua filha com usufruto vitalício. Eu repito, os senhores têm aí o contrato com usufruto vitalício?"
Thomaz Bastos percebendo que o argumento do adversário poderia ser visto com certa consistência, procurou desestabilizar Troncoso usando sua presença de espírito e lançando mão de uma observação jocosa: "pena que durou pouco a vida dela".
Troncoso querendo sustentar a força do seu precioso argumento foi para o revide: "Vossa excelência, se pretende fazer comicidade, nós vamos montar um circo, se pretende conversar sério, nós vamos conversar sério. Durou muito". Lógico que Troncoso dizia que durou muito a seriedade do debate.
Thomaz Bastos não se abateu e voltou a fustigar com uma tirada espirituosa: "um ano". Ele se aproveitou do fato de o oponente fazer referência ao tempo de seriedade do debate para emendar com a observação anterior: um ano.
Troncoso não queria perder o embate: "Então, ele foi dar um apartamento na antevisão de que iria matar depois de um ano? Vossa excelência é o presidente da Ordem [dos Advogados do Brasil], um advogado de grande talento, é de uma mediocridade esse aparte que não tem conta. Isso não fica bem para Vossa excelência".
O público não resistiu e se manifestou com alarde. O Juiz José Roberto de Almeida foi severo e exigiu silêncio e respeito no tribunal. Dizem, entretanto, aqueles que estavam próximos, que ao repreender a plateia também apresentou um leve sorriso, pois sabia que estava presenciando um dos momentos mais memoráveis da oratória judiciária.
E onde está a coincidência? Em uma de minhas aulas, comentei sobre esse episódio. Um de meus alunos, sentado na primeira fileira da sala, levantou o braço e disse: "Professor Polito, o juiz José Roberto era o meu pai. Ao ser enterrado, os discursos de despedida foram proferidos por aqueles que atuaram nesse júri".
Thomaz Bastos sempre me tratou com extrema gentileza e cordialidade. Todas as vezes em que nos encontrávamos, de longe abria o sorriso e me cumprimentava com a simpática pergunta: "Polito, como vai o nosso livro?" Dizia que, pelo fato de ter prefaciado meu livro “Assim é que se fala – como organizar a fala e transmitir ideias”, sentia-se meio responsável pelos destinos da obra.
Tenho ainda viva na memória sua reação de felicidade quando nos encontramos no restaurante Piantella, em Brasília, e eu lhe comuniquei que o livro acabara de ser publicado no México com o título “Cómo hablar para convencer”. Foi rápido na observação: "quer dizer, professor, que agora já somos internacionais?!"
Ao paraninfar uma das turmas do nosso curso de oratória, comoveu a imensa plateia que lotava o grande auditório do hotel Maksoud Plaza, em São Paulo com sua extraordinária capacidade oratória. Ele mesmo escreveu depois sobre aquela experiência: “Fiquei encantado. A experiência daquela manhã de domingo, quando quase 300 alunos receberam os seus diplomas e fizeram os seus corretos (e alguns brilhantes) discursos, convenceu-me da excelência do curso e dos métodos”.
Esse é o advogado, o orador, o amigo. Aquele que, mesmo tendo ocupado o cargo de ministro, jamais deixou de olhar com carinho e gentileza os que passaram por sua vida, ou como aliados, ou como adversários. Fui sempre um admirador da sua capacidade oratória. Sem ele a Arte de Falar brasileira fica mais empobrecida.
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