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Reinaldo Polito

O que você acha dessa história de falar amigues bonites?

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camoes Imagem: reprodução

Colunista do UOL

24/11/2020 04h00

A gramática é a arte de remover as dificuldades de uma língua; mas a alavanca não deve ser mais pesada que a carga.
Rivarol

Não é de hoje que ouço falar nessa tendência de mudar a indicação de gênero na língua portuguesa. No começo, parecia ser algum tipo de brincadeira. Sugeriam que palavras terminadas em "o" para indicar masculino e feminino passassem a ser grafadas com "x" ou "@". Quase caí de costas ao me deparar com um anúncio em uma das faculdades em que leciono: "Atenção alun@s". Pensei - o assunto é sério mesmo.

Nessa época eu presidia a Academia Paulista de Educação, composta por reitores de grandes universidades, secretários estaduais e municipais de educação e profissionais envolvidos diretamente com o mundo educacional. Levantei essa questão em algumas de nossas reuniões, mas ninguém achou que valesse a pena discutir o tema. Nós nos enganamos, pois deveríamos ter debatido o assunto com mais profundidade.

De uns tempos para cá, tem ganhado força a ideia de que palavras femininas terminadas em "a" e palavras masculinas terminadas em "o" devessem ter a terminação em "e". A maioria que não concorda quase sempre diz que isso é besteira, coisa de gente que não tem o que fazer. Lógico que o assunto não pode ser debatido nessa superficialidade, de forma tão rasa.

A opinião do professor Sérgio Nogueira

Há pouco tempo fiz uma live com o professor Sérgio Nogueira (está salva no meu instagram), um dos maiores estudiosos da língua portuguesa, e conversamos sobre essa questão. Ele deu uma explicação interessante. Disse que no latim, de onde vem a língua portuguesa, havia três gêneros: o masculino, o feminino e o neutro.

Na língua portuguesa, o neutro acabou sendo absorvido pelo masculino, embora nos pronomes demonstrativos tenhamos este, esse e aquele que são masculinos; esta, essa e aquela que são femininos; e isto, isso e aquilo que são neutros. Afirma o professor Nogueira duvidar que "esse tal neutro" que estão querendo impor funcione. Isso porque a língua é um fenômeno natural. Não vem de fora para dentro, já que não se criam regras para que as pessoas falem corretamente. Nós é que criamos as regras a partir do bom uso.

Entrevista com a Dra. Edna M. B. Perrotti

Por causa dessa polêmica, resolvi entrevistar a professora Edna Maria Barian Perrotti, doutora em Linguística Aplicada ao Ensino da Língua, professora de Linguística e Redação em importantes universidades e autora de vários livros sobre a matéria de sua especialidade. Uma de suas obras, "Superdicas para escrever diferentes tipos de texto", superou a marca dos 100 mil exemplares vendidos, e foi publicada com sucesso na Itália. Suas respostas nos dão bons subsídios para refletirmos a respeito desse tema.

É possível que regras impostas para a língua sejam adotadas?

As línguas são organismos vivos e naturais, portanto, passíveis de mudanças. Ao utilizá-las, seus falantes vão adquirindo novas palavras e abandonando outras, num processo natural, quase inconsciente e coletivo, sem que haja nenhuma imposição. As pessoas que hoje têm mais de 60 anos certamente se lembram das cartas comerciais em que era preciso usar o pronome de tratamento V.Sa. Hoje ninguém estranha receber uma carta de um banco, por exemplo, e ser chamado por você. E é claro: a mudança não ocorreu de um dia para o outro, nem foi feita por imposição.

Como a senhora avalia essa mudança para indicar o gênero na língua portuguesa?

Hoje está havendo sim um movimento, em nome da inclusão, para que a indicação de gênero seja mudada na língua portuguesa. Palavras femininas terminadas em -a e palavras masculinas terminadas em -o passariam a ter a terminação -e. E como se trata de uma matéria mais geral, nem vou entrar na questão de que a terminação -o não é marca de masculino. O feminino e o plural é que são formas marcadas.

A senhora poderia explicar melhor?

Vou me ater ao movimento de inclusão que diz respeito à terminação das palavras referentes às pessoas do sexo feminino e do sexo masculino para que tenham um gênero neutro. Por este movimento, menino e menina teriam uma só terminação: menine, que seria caracterizada pelo adjetivo bonite. Só que, neste caso, seria preciso também mudar os artigos o(s) e a(s) para e(s): e menine bonite. Mas isso traria um grande problema de comunicação.

Haveria, então, só o gênero neutro?

Pois é, o gênero neutro não poderia abolir as formas de masculino e feminino, substituindo-os, mas sim deveria designar aquelas pessoas que tiveram outra opção que não o sexo masculino ou o sexo feminino. Haveria, então, na língua portuguesa, três marcas de gênero gramatical: o masculino, o feminino e o neutro, como ocorria no latim.

Há diferença do nosso uso e do latim?

Somos uma língua originada do latim, ou continuidade do latim, só que o latim, o clássico em especial, não fazia uso do artigo. Como, em português, o artigo é essencial, e é ele que determina o gênero gramatical (reforço: gênero gramatical, não gênero sexual), a substituição da tradicional marca de gênero masculino (-o) e feminino (-a) para (-e) ou (-x) (meninx bonitx) apenas na terminação das palavras, em nome de uma identidade inclusiva, caem por terra. Se for continuar a oposição o/a pelo artigo, não existirá neutralidade nenhuma.

Como a língua falada entra nessa história?

Essa é uma questão importante. Em primeiro lugar, porque a escrita é e sempre foi consequência da fala. E ninguém diz o menine é bonite ou a menine é bonite ou e menine bonite; nem formula a frase: médique, e farmacêutique, es terapeutes e e psicólogue estão em reunião; nem mesmo todes vão gostar deste suco.

Qual o outro ponto a ser considerado?

A segunda consideração é o fato de que é função do ARTIGO e não da terminação da palavra identificar o gênero gramatical em português. Senão, vejamos:

  • palavras terminadas em -a são geralmente antecedidas pelo artigo -a: a menina, a médica, a poeta, a engenheira, a garça, a criança, a vítima, a pessoa (não importa se as quatro últimas são do sexo feminino, do sexo masculino ou de outro sexo).
  • palavras com a mesma terminação -a são gramaticalmente masculinas se antecedidas pelo artigo -o: o psiquiatra, o astronauta, o psicopata, o planeta, o telefonema (vale lembrar: essas palavras são originadas do grego, não do latim).
  • palavras terminadas em -o são gramaticalmente masculinas quando antecedidas pelo artigo -o: o menino, o moço, o muro, o relatório, o médico.
  • palavras terminadas em -o (poucas) são gramaticalmente femininas quando antecedidas pelo artigo -a: a prodígio, a robô, a foto.
  • palavras terminadas em -e são gramaticalmente femininas quando antecedidas pelo artigo -a: a estudante, a principiante, a paciente, a superintendente.
  • palavras terminadas em -e são gramaticalmente masculinas quando antecedidas pelo artigo -o: o estudante, o principiante, o jacaré, o elefante, o cônjuge (esta serve tanto para homem quanto para mulher).
  • palavras com qualquer outra terminação dependerão do artigo para ser consideradas gramaticalmente femininas ou masculinas: o juiz, o/a aprendiz, a perdiz, o homem, o/a general (há também a generala), o/a major, o/a coronel.

A senhora acredita que esteja havendo algum equívoco nessa imposição?

Sim, pois se quem advoga a mudança está pensando numa identidade de gênero inclusiva é porque confunde gênero sexual (o homem/a mulher; o gato/a gata) com gênero gramatical, que serve para identificar não só pessoas ou animais de sexos diferentes, mas também seres inanimados, que não pertencem a nenhum gênero sexual (a casa, a roupa, o dia, o muro, o soluço, a noite, a rede, o pente).

Só para reforçar: gênero sexual (qualquer que seja a opção) e gênero gramatical são coisas diferentes. Se o artigo - ou qualquer outra palavra - precisar ser usado para indicar o sexo a que uma pessoa pertence (se se trata de homem ou mulher), voltamos à estaca zero. A distinção masculino/feminino continuará a existir. Ou seria o caso de haver a distinção masculino/feminino/neutro?

Haveria outros impedimentos para essa mudança na terminação para -e, para -x, ou, ainda, para -@ na indicação do gênero?

Podemos acrescentar outra razão relevante. A gramática vem do uso natural da língua que utilizamos na comunicação. É necessário que um grande número de pessoas, mas um grande número mesmo, num processo natural e coletivo, utilize uma determinada forma para que depois a gramática a adote e a recomende.

Como a senhora poderia resumir essa questão?

Poderia resumir dizendo que é necessário muito tempo para que as palavras se modifiquem no tempo e/ou no espaço. A história de todas as línguas mostra e comprova que as mutações levam até mesmo séculos. Não é porque um indivídue - ou uma centene de indivídues - acha que tode brasileire é otimiste e crédule que a mudança vai acontecer amanhã. Não. Por enquanto a gramática será poupada.

Por que a gramática deve ser poupada?

Simplesmente porque as marcas de feminino e plural, assim como as desinências verbais, são elementos gramaticais que fazem parte de uma lista fechada, que não admite mudanças, diferentemente do radical da palavra, que faz parte de uma lista aberta. Por exemplo, deletar é um verbo relativamente novo, ou seja, há um radical novo. Só que as suas terminações em todas as pessoas, tempos e modos são idênticas às do verbo amar. E mais: esse verbo surgiu naturalmente, pelo uso, não porque alguém impôs.

Aqui vale citar Joaquim Mattoso Camara Júnior, um dos mais reconhecidos linguistas do Brasil, com quem aprendi muito em termos de terminação das palavras, e que faz uma excelente descrição do gênero, principalmente em sua obra Estrutura da Língua Portuguesa, publicada pela Editora Vozes.

Diante dessas reflexões feitas pelos professores Sérgio Nogueira e Edna Barian Perrotti, podemos concluir que o assunto é mesmo muito complexo e controvertido. Por isso, antes de sair por aí adotando modismos só para entrar na onda, é preciso refletir, estudar e acompanhar atentamente os debates a respeito desse tema.

Superdicas da semana

  • Antes de adotar um modismo, avalie bem sua conveniência
  • As regras são criadas a partir do bom uso da língua falada
  • As mudanças na língua chegam a levar séculos até para ocorrer
  • Gênero sexual e gênero gramatical são coisas diferentes

Livros de minha autoria que ajudam a refletir sobre esse tema: "29 Minutos para Falar Bem em Público", publicado pela Editora Sextante. "Superdicas para escrever uma redação nota 1.000 no ENEM", "Como falar de improviso e outras técnicas de apresentação", "Oratória para advogados", "Assim é que se Fala", "Conquistar e Influenciar para se Dar Bem com as Pessoas" e "Como Falar Corretamente e sem Inibições", publicados pela Editora Saraiva. "Oratória para líderes religiosos", publicado pela Editora Planeta. Leia também os livros da professora Dra. Edna Barian Perrotti: "Superdicas para escrever bem diferentes tipos de texto" e "Superdicas para manter seu português em ordem", publicados pela Editora Saraiva.

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