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Reinaldo Polito

Será que perderam a forma dos grandes oradores políticos?

Plenário do Senado Federal  - MATEUS BONOMI/ESTADÃO CONTEÚDO
Plenário do Senado Federal Imagem: MATEUS BONOMI/ESTADÃO CONTEÚDO

Colunista do UOL

03/08/2021 04h00

Todo pensador que quiser tornar-se orador, todo homem de espírito e de coração que quiser fazer-se eloquente e ser eloquente, comover as massas, dominar as assembleias, agitar os impérios, com a sua palavra, bastará que passe da região das ideias para o domínio dos lugares-comuns.
Victor Hugo

Tenho acompanhado de perto a política brasileira, especialmente os oradores que perambulam pelas tribunas da Câmara e do Senado. Quando comparo os congressistas atuais com alguns políticos que estiveram em ação no passado, pergunto: o que aconteceu com a eloquência parlamentar no Brasil? Não se fazem mais oradores como antigamente?

Onde foram parar os "Coelho Netto", "Joaquim Nabuco", "João Neves da Fontoura", "Emílio Carlos" e tantos outros astros da tribuna? Será que perderam a forma? É possível encontrar um Roberto Jefferson aqui e ali, mas a turma boa de microfone desapareceu. Por isso, quero matar a saudade de um que foi excepcional, Carlos Lacerda.

Discursos em fitas cassetes

Durante muito tempo mantive um carro por motivo banal: era dos únicos que ainda possuía toca-fitas. Havia uma empresa no Rio de Janeiro que comercializava gravações antigas. Estou falando dos anos 1980, quando ainda estávamos distantes da internet. Eles enviavam um catálogo datilografado com todo o repertório disponível.

Ali estavam relacionados discursos de oradores famosos, programas de rádio que já não existiam mais, músicas raras e várias outras curiosidades. Bastava escolher e pedir por telefone a gravação desejada. Em alguns dias as fitas cassetes estavam em mãos. Comprei todas as gravações de discursos, debates e pronunciamentos de Carlos Lacerda.

Esse foi o motivo de eu ficar com o carro que possuía toca-fitas. Era nele que eu ouvia os discursos no longo percurso de mais de uma hora na ida e na volta do escritório. Não foram poucas as vezes em que cheguei ao destino e permaneci mais um tempo no estacionamento para não perder o final de uma de suas apresentações. Lacerda foi um craque na arte de falar em público. Possuía voz forte, sonora, com timbre peculiar e muito envolvente.

Até os adversários admiravam

Ao assomar à tribuna transformava-se em poderoso guerreiro. Seu porte, determinação e preparo para discorrer sem anotações a respeito de qualquer tema impressionavam e provocavam admiração até nos adversários, que não eram poucos. Aprendi muito com esse orador.

Inúmeras vezes voltei a fita na tentativa de compreender bem determinadas estratégias de suas exposições. Em alguns momentos parecia que ele havia se equivocado, mas só após ouvir certas passagens três, quatro vezes, era possível captar suas reais intenções. Eu assimilava esses ensinamentos e punha em prática imediatamente, na primeira oportunidade. Fui seu aluno a distância.

Cada fala de Lacerda era uma aula de estilo, organização mental, lógica e eloquência. Seu vocabulário era tão rico e abrangente que permitia a ele não repetir palavras mesmo nas situações em que se expressava totalmente de improviso. Falava como se fosse um escritor zeloso em não usar os mesmos vocábulos dentro da frase. Perorava com a correção de quem estivesse escrevendo, mas com a naturalidade de quem conversava de maneira muito animada.

A excelência na comunicação

Sua lógica de raciocínio era incomparável. Não pronunciava nenhuma frase que não se transformasse em premissa para as suas conclusões. Às vezes fazia essas ligações após dez, quinze minutos, quando alguns já nem se lembravam mais do que ele havia plantado nos primeiros momentos da apresentação.

Venceu várias eleições. Foi vereador, deputado federal e governador do estado da Guanabara. Atuou intensamente como jornalista, tendo fundado o jornal Tribuna da Imprensa. Também criou uma das mais importantes editoras da nossa história, a Nova Fronteira.

Possuía toda sorte de defeitos. Era contraditório. Guardava profundo rancor dos adversários. Era vingativo, sarcástico e até traiçoeiro. Não tinha escrúpulos quando lutava pelo poder. Durante suas contendas não se preocupava muito em permanecer apenas no campo das ideias, para tornar sua causa vitoriosa atacava sem piedade as pessoas.

Imbatível num debate

Por isso, era praticamente impossível enfrentá-lo em um debate. E os que ousavam arriscar, invariavelmente, terminavam a contenda com o gosto amargo da derrota. E por esse motivo também fazia muitos inimigos. Esses derrotados aguardavam pacientemente uma oportunidade para atacá-lo. Na maior parte das vezes de tocaia.

Foi algoz de importantes personalidades da nossa história, como, por exemplo, os ex-presidentes Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros e João Goulart. Apenas no final, depois de ser exilado pelo movimento militar de 1964, quando estava em Lisboa, se reaproximou de Juscelino. Demonstrava estar disposto a unir forças na luta pela redemocratização do país.

Independentemente de ter conquistado aliados ou desafetos, Carlos Lacerda terá sempre um lugar de destaque na história política brasileira. Deixou um legado que influenciou, influencia e continuará influenciando as gerações que o sucederam. Eu fui um dos beneficiados. Muitas aulas de oratória que preparei ao longo dos últimos 45 anos foram inspiradas em seu exemplo. E foi com elas que treinei dezenas de milhares de alunos.

Superdicas da semana

  • Aprenda com o exemplo dos grandes oradores
  • O comportamento agressivo provoca desafetos
  • Os perdedores podem querer se vingar
  • Não custa deixar uma porta aberta para que o adversário de hoje seja aliado amanhã

Livros de minha autoria que ajudam a refletir sobre esse tema: "Como Falar Corretamente e sem Inibições", "Comunicação a distância", "Os segredos da boa comunicação no mundo corporativo", "Saiba dizer não sem magoar os outros" e "Oratória para advogados", publicados pela Editora Saraiva. "29 Minutos para Falar Bem em Público", publicado pela Editora Sextante. "Oratória para líderes religiosos", publicado pela editora Planeta.