IPCA
0,83 Mar.2024
Topo

José Paulo Kupfer

REPORTAGEM

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

"Se o governo não fizer nada já, podemos ter apagões no segundo semestre"

Eduardo Anizelli/Folhapress
Imagem: Eduardo Anizelli/Folhapress

22/06/2021 12h36

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

A crise hídrica, provocada pela maior seca em mais de 90 anos, expôs riscos e ameaças de racionamentos e apagões no fornecimento de energia elétrica. Na opinião do engenheiro e hidrólogo Jerson Kelman, se o racionamento, com corte compulsório do consumo, como em 2001, ainda é improvável, apagões não programados podem ocorrer, no segundo semestre, se medidas para evitá-los não forem tomadas de imediato.

Não há ninguém tecnicamente mais abalizado e com mais experiência acumulada do que Kelman para fazer essa avaliação. Além de ter sido presidente da ANA (Agência Nacional de Águas) e diretor-geral da Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica), presidiu a Light e a Sabesp. Foi também presidente da força-tarefa, nomeada pelo então presidente Fernando Henrique, que investigou e explicou o racionamento de 2001.

Nesta entrevista ao UOL, Kelman detalha os problemas que podem levar a apagões não programados de energia e, numa hipótese mais remota, ao racionamento, apontando também as providências que deveriam ser tomadas para evitar que ocorram. "A criação de uma câmara ministerial para administrar o problema e a negociação com indústrias para remanejar turnos de produção são providências urgentes que o governo já deveria estar tomando", diz o especialista.

O que é preciso fazer para evitar um racionamento de energia ainda em 2021?

Criar uma gestão interministerial. Tem de ser uma gestão interministerial que permita acionar, rapidamente, todo os braços do governo que forem necessários.

Mas a primeira medida, a mais urgente, e já existe até uma portaria para isso, é reduzir a vazão de água que sai da usina de Porto Primavera, no rio Paraná, entre São Paulo e Mato Grosso do Sul. E também na usina de Jupiá, também no rio Paraná.

O risco dessa medida é ambiental, ameaça de mortandade de peixes. Não é inevitável que aconteça, mas pode acontecer.

O risco é só ambiental?

Tem um estudo do ONS (Operador Nacional do Sistema Elétrico), do fim de maio, que traça o retrato do quadro. Esse relatório informa que, feitas as simulações e previsões, cotejando projeções de oferta e demanda de energia, batemos na trave, mas não teríamos problemas energéticos.

Não ter problema energético significa dizer que a demanda média seria atendida, mas poderia haver problemas de ponta, de potência, no atendimento da demanda máxima.

Ou seja, pode haver apagões?

Pode ter apagões não programados. Na crise de 2001, o que havia era um problema energético, era necessário diminuir a demanda. Não era diminuir o consumo às 18 horas, quando as pessoas ligam o chuveiro elétrico. A oferta não atendia à demanda média e era preciso diminuir o consumo, digamos, ao longo do mês.

Agora, o mais provável é que possam ocorrer problemas na ponta porque os reservatórios de água, nas hidrelétricas, por falta de chuvas, estão ficando muito vazios. Quando isso ocorre, diminui a potência das usinas, a potência da usina depende da queda d'água, e a oferta de energia.

O estudo do ONS mostra que, se for possível usar todos os recursos disponíveis, todas as usinas térmicas, solares e eólicas, bem como reduzir a vazão das hidrelétricas, mas sem causar problemas ambientais, prejudicar a navegação dos rios e as atividades econômicas que dependem dos reservatórios das usinas, se for possível fazer tudo isso, não haverá problema energético. Mas pode ainda ter um problema de ponta.

O que teria de ser feito diante desse risco?

Se esse problema ocorresse, teria de ser feito um remanejamento do consumo na hora da ponta. Não é nada tão difícil. Basta convencer grandes consumidores, grandes indústrias, a deslocar a produção para um turno na madrugada. Claro que sacoleja, cria alguma turbulência, mas é algo manejável.

Esse remanejamento já deveria estar sendo negociado com os grandes consumidores. Já era a hora de perguntar a eles o que vão querer em troca para fazer o remanejamento da produção. E negociar com eles.

Veja, não se trata de racionamento, não se está falando em cortar consumo. Seria negociar a substituição do consumo em horários de pico por consumo em outros horários.

Há risco de cortes no consumo residencial, além do que provavelmente vai ser promovido pelo aumento das tarifas com as bandeiras vermelhas?

Possivelmente, não. Mas é preciso que algumas medidas sejam tomadas, e isso tem de ser feito agora. Tem de fazer a coisa certa e fazer logo, fazer já.

É por isso que é preciso, em primeiro lugar, criar um organismo, uma câmara, reunindo ministérios e especialistas, dando-lhe, excepcionalmente, poderes para administrar essa questão da vazão dos reservatórios. Quem vai decidir reduzir a vazão do reservatório da usina não é mais um diretor da geradora, que poderia ser processado por um promotor ou procurador local, mas esse órgão com poderes especiais.

Pouco adianta ligar todas as térmicas se for necessário, compulsoriamente, soltar água de uma hidrelétrica, não para produzir energia, mas para cumprir uma obrigação ambiental, em áreas do rio situadas depois da usina, a jusante da usina, como se diz.

Por que razão uma usina soltaria água nas turbinas sem precisar gerar energia? Porque o responsável teme reduzir a vazão e ser acusado, inclusive criminalmente, de estar prejudicando o meio ambiente.

Esse é um primeiro passo, mas o que mais precisa ser feito?

Precisa segurar a água agora o máximo possível. Para segurar a água tem de ligar as térmicas, o que já foi decidido. Tem consequências econômicas, claro. Não se passa pela pior seca em 91 anos sem algum efeito econômico. Mas é o que precisa ser feito. Ligar as térmicas é uma condição necessária, mas não suficiente. Tem também de trabalhar para que a água fique no reservatório, evitando que seja desperdiçada em algum outro uso.

O consequente risco ambiental também pode ser enfrentado, como está sendo feito na Califórnia, nos Estados Unidos, que passa por uma seca e onde os salmões estão sendo transferidos dos rios em que estão ameaçados para outros locais seguros. Efeitos ambientes também podem ser evitados, mas não vai ser o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) que vai ter agilidade para fazer isso, vai ter de ser um conselho de ministros, formado para isso.

Do ponto de vista estritamente técnico, a medida mais urgente é reduzir a vazão de água nas usinas hidrelétricas?

Não é a única medida, mas é de fato a mais urgente. Mas, de novo, repito, a questão não é simples e há outros conflitos. Há, por exemplo, uma grande disputa em torno do lago de Furnas, em Minas Gerais, porque, no entorno, desenvolveu-se um ativo polo turístico.

Aí, veja o conflito, o presidente do Senado, o mineiro Rodrigo Pacheco, não tem escondido preocupação, preocupação legítima, diga-se, que uma redução da vazão de água em Furnas ameace essa atividade, tendo até declarado que não vai deixar que isso ocorra.

Se Pacheco for bem-sucedido, aumenta o risco de racionamento. Afinal, as barragens do setor elétrico foram planejadas e construídas considerando que a vazão das águas seria manejada para garantir o fornecimento de energia, não outros usos.

Calculo que, se o senador Pacheco for bem-sucedido em impedir o uso da água do reservatório de Furnas para produção de eletricidade na cascata de usinas de Furna a Itaipu, o custo para os consumidores chegará a pelo menos R$ 8,6 bilhões. Mas entendo que a custo bem menor seria possível mitigar os efeitos de uma redução na vazão de Furnas, nas atividades econômicas em seu entorno.