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Pandemia leva desempregados a abrir negócio por necessidade, não vocação

Rejane Santos, 49, começou a vender comidas nordestinas para se sustentar na pandemia - Arquivo pessoal
Rejane Santos, 49, começou a vender comidas nordestinas para se sustentar na pandemia Imagem: Arquivo pessoal

Isaac de Oliveira e Maurício Businari

Do UOL, em São Paulo, e colaboração para o UOL, em Santos (SP)

29/06/2021 04h00

O que fazer após perder o emprego em plena crise? Começar um negócio se tornou a única saída para muitos brasileiros na pandemia. Esse movimento, também chamado de empreendedorismo por necessidade, foi encabeçado por pessoas como Rejane Santos, 49, que passou a vender, em São Paulo, pratos típicos da culinária popular cearense depois de ser demitida em março do ano passado.

"Para mim, com quase 50 anos, foi muito difícil. Entrando na menopausa, a cabeça estava a mil. Passei um monte de dias deitada, pensando, fiquei até um pouco depressiva", diz Santos, que trabalhava como auxiliar de cozinha em um restaurante na capital paulista.

Crescem negócios por sobrevivência

Segundo a pesquisa GEM (Global Entrepreneurship Monitor) 2020, o número de empreendedores iniciais (negócios criados a menos de 3,5 anos) motivados por necessidade saltou de 37,5% (2019) para 50,4% (2020), o mesmo nível de 18 anos atrás.

Entre os empreendedores nascentes (negócios com até três meses de atividade), a proporção de empreendedores por necessidade saltou de 20,3% (2019) para 53,4% (2020), o mesmo nível de 19 anos atrás.

Já pensa em comprar casa própria

Enquanto recebia o seguro-desemprego, Rejane passou a atender pequenas encomendas de comidas típicas, feitas por meio do seu Instagram pessoal. Aos poucos, a sua culinária "afetiva" foi caindo no gosto de conterrâneos que passaram a compartilhar sua história.

Em poucos meses, a cearense viu nascer uma rede de clientes que impulsionou a criação do "Sabor do Nordeste".

"Eu até já vendi comida na calçada de casa, lá no Ceará, mas aqui em São Paulo era inimaginável para mim um dia ter esse público, que gosta da nossa comida. E é um orgulho porque eu sei que também estou difundindo a nossa cultura
Rejane Santos

O pontapé inicial contou com a ajuda de familiares e amigos, que também ficaram desempregados. Enquanto Santos ficava responsável pelos quitutes, as filhas e os genros faziam atendimento e entrega.

Neste mês, a cearense comemora o balanço positivo de um ano de negócio, o qual lhe permitiu ajudar a mãe no Ceará, pagar dívidas e as aquisições feitas para dar conta das encomendas, como uma geladeira mais espaçosa.

"Agora estou com a possibilidade de ter uma casa própria em breve. Se Deus quiser, vou conseguir fazer um financiamento com a minha filha de um cantinho para nós", diz Santos.

Crise é a pior, diz Sebrae

É normal que crises impulsionem o surgimento de novos negócios criados por necessidade. Mas esta pandemia, segundo Marco Aurélio Bedê, analista de Gestão Estratégica do Sebrae e responsável pela pesquisa GEM, não tem precedente.

"Tivemos muita gente saindo dos mercados formais e informais. Aquelas pessoas que entraram no empreendedorismo, além de não terem experiência, tinham um perfil qualitativo [de formação] inferior.
Marco Aurélio Bedê

Dispara digitalização de pequenos negócios

Victor Macul, professor e coordenador do Centro de Empreendedorismo do Insper, diz que o país vive uma grande mudança cultural nos negócios, com maior penetração de serviços online.

"A digitalização das pequenas empresas foi acelerada, e há várias oportunidades surgindo nessa linha de transformar negócios que eram offline em online", diz Macul.

O professor diz que, embora a digitalização tenha avançado, ela ainda é um desafio para pequenos empreendedores, já que é preciso ter um conhecimento mais técnico e de capacitação.

"Para quem empreende e tem de contratar alguém de tecnologia, há bastante dificuldade de encontrar profissional disponível e bancar o custo dessa mão de obra", diz Macul.

Não consegue emprego mesmo com experiência

Bruno Oliveira, 38, abriu uma loja de roupas em Belo Horizonte, durante a pandemia - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Bruno Oliveira decidiu abrir uma loja de roupas, em Belo Horizonte, devido à dificuldade de se reinserir no mercado
Imagem: Arquivo Pessoal
Após três anos fora do mercado de trabalho, Bruno Oliveira, 38 anos, decidiu abrir uma loja de roupas masculinas, a Wolf, em dezembro de 2020. Como a inauguração aconteceu em plena pandemia e o movimento na loja ainda está abaixo do esperado, Oliveira tem focado em levar o negócio para o ambiente online.

"Estamos procurando algumas ferramentas, já que o pessoal está assustado com a pandemia e não tem vindo à loja. Então estou fazendo um curso pra desenvolver essa parte da loja online
Bruno Oliveira

Com experiência na área de suprimentos desde os 18 anos, o agora empresário conta que ficou fora do mercado formal desde 2017. A dificuldade para se reinserir na profissão de analista de compras o levou a abrir o próprio negócio com um amigo. O investimento, segundo ele, veio da esposa.

"Fiquei uns dois anos fazendo entrevista e via uma certa dificuldade, mesmo com uma experiência enorme na área de suprimentos. Já que vim da área de administração e conheço bem a parte de compras, comecei nesse movimento de pensar no meu próprio negócio", afirma Oliveira.

A abertura da loja precisou ser adiada uma vez que o empresário se deparou com alguns empecilhos impostos pela pandemia, como as fábricas de fornecedores estarem fechadas ou com os funcionários e a produção reduzidos.

R$ 2.500 por semana com empadinhas

Juliana Braga, 33 anos, e o marido, Anderson Santos de Lima, 34, são um exemplo de perseverança e vontade de vencer. O casal, que já teve que dormir nas ruas por conta de dificuldades financeiras, conseguiu montar um negócio com apenas R$ 50: uma empresa caseira, de produção e venda de empadinhas, em Santos (SP).

Juliana Braga, 33, abriu um negócio de empadinhas em Santos (SP), devido à necessidade na pandemia - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Juliana Braga começou a vender empadinhas após ficar sem moradia
Imagem: Arquivo pessoal
Com o investimento inicial que conseguiu juntar para iniciar o negócio, Juliana investiu em produtos para produzir a primeira fornada de empadinhas. No início, seu faturamento era de R$ 120 por semana.

Hoje, graças à ajuda de pessoas que se sensibilizaram com postagens publicadas nas redes sociais, contando a sua história, seus rendimentos aumentaram quase 2.000%, chegando a R$ 2.500 por semana de faturamento bruto.

Atualmente, o "Empadinhas da Juju" conta com perfis nas redes sociais, onde os clientes podem fazer encomendas. As vendas também ocorrem pelo WhatsApp.

Começou vendendo balas em semáforos

O casal decidiu buscar melhores oportunidades no litoral de São Paulo, onde Juliana residiu na infância e adolescência, após ser despejado de um barraco na Zona Leste de São Paulo, em meio à pandemia, por conta de uma ação de reintegração de posse.

Viemos para Santos guiados pela minha intuição, com duas mochilas de roupas e os R$ 600 do auxílio emergencial. Eu estava grávida de dois meses da minha filha Alice. Dormimos na rua por um tempo, depois conseguimos alugar um quartinho. Vendíamos balas nos semáforos
Juliana Braga


Para dar conta do volume de pedidos, neste mês contrataram uma ajudante e um entregador, e Juliana já planeja o crescimento da empresa. Ela está providenciando a abertura de uma MEI (Microempresa Individual) e busca um espaço pequeno para montar uma cozinha.

"Nosso crescimento foi muito rápido. Graças a Deus pudemos contar com a ajuda de muitas pessoas bondosas para fazer acontecer. Mas a verdade é que quem se dedica de corpo e alma para um negócio acaba vencendo pelo mérito. Quem não corre atrás dos seus sonhos, não consegue nada nesta vida", afirma Braga.

Riscos para negócios em 2021

Sobre as expectativas para negócios neste ano, o analista de Gestão Estratégica do Sebrae avalia que as taxas de desemprego não estão cedendo e continuam altas.

"Isso é um indicativo forte de que esse fenômeno [pandemia] continua presente e tem muita gente se tornando empreendedor por necessidade", diz Bedê.

Para as mulheres empreendedoras, que foram bastante afetadas pela crise, o analista afirma que as dificuldades nos negócios dependem da evolução das regras de isolamento social.

"O que puxou muito as mulheres para fora do mercado de trabalho foi a necessidade do isolamento, porque elas são as principais responsáveis por cuidar do lar, das crianças, dos idosos, que passaram a depender de cuidados mais especiais no período de pandemia
Marco Aurélio Bedê

Conforme a pesquisa GEM 2020, o número de empreendedoras já estabelecidas diminuiu 62% de 2019 para 2020 —queda muito maior do que a verificada entre os homens (-35%).