Especialista explica como teoria de educação infantil transforma empresas
Ao buscar meios para educar sua filha pequena, Katerine Amaral descobriu a teoria da disciplina positiva, originalmente aplicada à educação infantil, que tem por base construir relacionamentos mais empáticos. Como especialista em recursos humanos, logo percebeu que os mesmos conceitos poderiam ser aplicados à gestão corporativa de pessoas, derrubando práticas organizacionais ultrapassadas e limitantes. Quando compreendeu que só é possível transformar a cultura de uma empresa e obter mais engajamento das equipes a partir de uma administração mais humana, Kate abandonou uma carreira de 16 anos atuando em multinacionais como Whirlpool, Monsanto e PepsiCo. para investir na formação como educadora em disciplina positiva.
"O segredo é a conexão. A transformação só é possível pela capacidade de se colocar no lugar do outro para entender seus sentimentos e comportamentos", diz Kate, que é uma das poucas brasileiras formadas e certificadas nos Estados Unidos pelo instituto fundado pela criadora da metodologia, a terapeuta familiar Jane Nelsen. Mãe de sete filhos, Jane elaborou a filosofia da disciplina positiva na década de 1980 como ferramenta para educar crianças, tendo por base a centenária teoria do desenvolvimento individual do psicólogo austríaco Alfred Adler. Em 2018, após escrever diversos best-sellers sobre a aplicação da disciplina positiva no relacionamento entre pais e filhos, Jane adaptou a filosofia para o ambiente corporativo.
Na seguinte entrevista ao UOL, Kate, que idealizou e comanda a 1manas, uma startup de consultoria em relações interpessoais, explica como os princípios da disciplina positiva podem transformar a cultura das empresas.
Como você se interessou pela disciplina positiva?
Fui filha única por um longo tempo, o relacionamento com meu pai era problemático, eu ficava muito sozinha quando era criança. Então, a minha relação com a infância não era boa. Os primeiros meses depois do nascimento da minha filha, Malu, em 2015, foram tranquilos, porque o bebê não impõe as suas vontades. Mas, quando ela começou a falar e a se opor a alguma coisa, eu me recusei a achar que teria que dar um tapa numa criança para educar. Comecei a estudar bastante a educação infantil. Nessa época, a escola em que a Malu estudava me sugeriu conhecer uma consultora que era PhD em educação. Ela me recomendou um livro sobre a disciplina positiva e tudo fez sentido na minha vida, na minha alma. A chave é a verdadeira conexão entre pais e filhos, entre líder e colaboradores. No momento em que calçamos o sapato do outro para entender a sua perspectiva das coisas, mudamos na mesma hora. Continuei me aprofundando no assunto, fiz uma pós-graduação em neurociência e comportamento, e traçava vários paralelos com a vida corporativa, lembrando daqueles momentos em que enfrentamos algum problema com um funcionário a simplesmente não sabemos o que fazer. O sistema tradicional é falido no sentido humano. A disciplina positiva respondeu muitas inquietações que eu tinha nessa área.
Qual é o defeito da gestão de recursos humanos tradicional, na sua avaliação?
Quando o RH quis se tornar uma área estratégica, fazer parte do balanced scorecard [sistema de gestão baseado em indicadores balanceados de desempenho], uns 20 anos atrás, transformou tudo em processos com resultados mensuráveis, encaixotando as pessoas. Esse sistema não funciona mais, porém continua sendo usado. A demanda, hoje, é por um RH mais humano. Ninguém sabe bem como fazer, e eu acredito que a disciplina positiva dá uma resposta.
Quais ferramentas a disciplina positiva oferece para melhorar o ambiente corporativo?
Primeiro, a conexão verdadeira com os funcionários. Frequentemente, os gestores não têm a menor ideia da realidade dos seus liderados, de como está a sua vida, o que eles sentem e pensam. Antes de conversar com um colaborador sobre um problema, o gestor precisa pensar em como se conectar com ele tentando entender o seu ponto de vista. Não é possível mudar um comportamento sem compreender os motivos que levam a ele. Também é essencial validar os sentimentos do colaborador na situação.
Você pode dar um exemplo de uma maneira genuína de fazer isso?
Para se aproximar mais da equipe, um executivo que me consultou se informou sobre os gostos de cada membro da equipe e mandou um kit personalizado para a casa dos funcionários. Um ganhou acessórios para o gato de estimação; outro, brinquedos educativos para os filhos; e uma jovem ganhou produtos para fazer um spa em casa. O gestor se esforçou para entender essas pessoas e elas se sentiram escutadas em sua individualidade e respeitadas. Quando você respeita o outro, ele respeita você. Ninguém é igual a ninguém, não dá para ter processos padronizados achando que funcionam com todo mundo.
De que forma se corrige o comportamento indesejado de um funcionário?
Com certeza não é dando uma bronca na frente de todo mundo no meio de uma reunião. No curto prazo, até pode ser que funcione. Mas a mudança duradoura não pode ser baseada em medo. É a mesma coisa com as crianças. Se um filho tem medo dos pais, obedece as suas ordens, mas vai sair de casa o mais rápido que puder. A disciplina positiva prega que os relacionamentos precisam de gentileza e firmeza na mesma proporção para encorajar a autonomia do indivíduo. Ele percebe que pode confiar em você e você pode confiar nele. Em alguns casos, os erros têm que ser celebrados como oportunidade de aprendizado, não são motivo de punição. Quantos poemas já foram para o lixo e quantos foram publicados? Muito mais poemas foram descartados, porque a gente erra muito mais do que acerta. Sem aceitar o erro como normal, a pessoa nem tenta. Nos exercícios escolares, as crianças são sempre estimuladas a colorir os desenhos dentro das linhas. Por quê? Você pode estar matando um Miró. Não dá para colocar todas as pessoas na mesma caixa.
Qual é a melhor atitude a tomar quando o comportamento a ser mudado é muito tóxico? Dá para o gestor se colocar no lugar de um assediador, por exemplo?
Quando um homem machista tem uma chefe mulher, a líder consegue validar o sentimento desse funcionário dizendo que entende como o comportamento improdutivo gera sentimentos ruins para ele, que entende que é difícil para ele ter uma chefe mulher. Assim se cria a conexão que propicia a mudança.
No caso de problemas que atingem o grupo, seja a família ou a equipe, como se deve agir?
A reunião de família não é diferente da reunião de equipe. Tanto as crianças quanto os liderados precisam ser os protagonistas do processo. Quando se envolve todo mundo na resolução de um problema, as pessoas tendem a ser muito mais cooperativas. Quando se mostra vulnerabilidade, quando se compartilha dificuldades, as pessoas tendem a ser solidárias. Por exemplo, se uma mãe se sente sobrecarregada e precisa de mais espaço, pode perguntar: "Tenho sentido uma grande necessidade de ficar um pouco sozinha. Como podem me ajudar?". A solução aparece.
Da sua observação, quais têm sido as maiores dificuldades da gestão de pessoas na pandemia?
As pessoas estão muito cansadas, extenuadas. O líder precisa encontrar uma maneira de fazer com que a equipe saiba que ele também está se sentindo assim e de mostrar que passarão por isso juntos. Aí o colaborador sente que está sendo ouvido. A maior dificuldade que os gestores vêm tendo diz respeito à falta de controle. Eles perceberam que na verdade nunca é possível controlar nada nem ninguém. O funcionário pode estar presencialmente ao seu lado fuçando o Facebook. É preciso fazer o colaborador se engajar de outra maneira, e isso só acontece criando conexão com ele.
Com as crianças, a disciplina positiva aconselha não dar recompensas por bom comportamento. De que maneira uma empresa deve administrar os benefícios para os funcionários para que seja um reforço positivo?
Tem gente que está super infeliz no trabalho mas acaba ficando na empresa porque ganha bônus. Quer sair, a empresa oferece dinheiro para que fique. Isso não dura muito tempo. O incentivo tem que vir acompanhado de um tratamento mais humano.
Como se muda a cultura de uma organização segundo os princípios da disciplina positiva?
O trabalho tem que ser feito inicialmente com o RH e os gestores. Os workshops de disciplina positiva têm dinâmicas para que os executivos realmente se coloquem no lugar dos funcionários. Só aí enxergam sentido na metodologia. O ritmo de mudança depende muito da capacidade de o gestor alterar o jeito de agir e pensar sobre o outro. Dá para aprender sentimentos. Digo isso porque eu mesma aprendi.
As empresas modernas têm se mostrado importantes veículos para a disseminação de valores na sociedade. É esperado que a adoção da disciplina positiva no ambiente de trabalho tenha reflexos construtivos em outras comunidades das quais o indivíduo participe?
Super. Não existe uma pessoa que aplique a disciplina positiva em casa e seja um chefe péssimo. Quanto mais se internaliza a prática, mais se executa, em todo lugar.
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