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Dor e amizade: como a chefe do maior hospital de Manaus enfrenta a covid

Abastecimento de oxigênio no Hospital 28 de Agosto, em Manaus (AM): momento mais crítico da pandemia - Sandro Pereira/Fotoarena/Estadão Conteúdo
Abastecimento de oxigênio no Hospital 28 de Agosto, em Manaus (AM): momento mais crítico da pandemia Imagem: Sandro Pereira/Fotoarena/Estadão Conteúdo

Denyse Godoy

do UOL, em São Paulo

13/04/2021 04h00

Nenhuma categoria profissional tem penado tanto com o estresse na pandemia como a de médicos e enfermeiros, que travam duras batalhas diárias contra a covid-19 sem conseguir vislumbrar o fim da crise. E talvez ninguém personifique melhor o sofrimento - e a bravura - desses trabalhadores do que uma diretora de hospital. Mais ainda se for do maior hospital público do Amazonas, o 28 de Agosto, um dos protagonistas do drama da falta de oxigênio medicinal em janeiro.

Contando 17 anos de experiência em administração de unidades de saúde, a enfermeira Júlia Marques assumiu a liderança do 28 de Agosto no meio do furacão, em 2020. Pegou covid, viu seu marido passar 10 dias na Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) e entrar na fila do transplante renal, reorganizou uma operação que envolve 2.600 colaboradores e quase 400 leitos, precisou garantir que o atendimento a pacientes com outras doenças fosse mantido, teve que apoiar a equipe nos momentos mais complicados. "No momento em que dava vontade de desistir, um olhava para o outro e pensava: 'Não vou te deixar aqui'. Ninguém soltou a mão de ninguém", conta Marques, que agora começa a se preparar para uma eventual terceira onda da doença como for possível, já que o cenário continua bastante incerto.

Leia a seguir trechos da entrevista que a diretora concedeu ao UOL compartilhando as lições de gestão que teve na prática nos últimos meses:

Como foi o processo de escolha para esse cargo?

Trabalho como enfermeira concursada do estado do Amazonas desde 1998. Sou formada em administração hospitalar, fiz curso na Fundação Getulio Vargas e no Hospital Sírio Libanês. Em 2004, assumi a direção de um serviço de pronto atendimento, e fiquei por 13 anos. Em 2017, fui convidada a assumir a direção de um pronto-socorro infantil. Fiquei três anos lá. E, em agosto de 2020, me convidaram para assumir o Hospital 28 de Agosto. Acho que buscavam um perfil técnico, e não político.

Como você se sentiu ao assumir essa missão no meio do furacão?

Cheguei em agosto, quando a pandemia em Manaus tinha dado uma reduzida. No hospital infantil em que eu trabalhava antes, não sentimos muito o impacto da pandemia. Quando me convidaram, eu pensava: "Por que vou sair da minha zona de conforto?". Mas Deus tem um propósito para a vida da gente. Quando entrei e logo depois o meu marido foi para a UTI, entendi que precisava estar no 28 de Agosto naquele momento. [Chora]

Seu marido teve covid e ficou internado no mesmo hospital?

Ficou na UTI dez dias. Ele tinha um problema renal que não conhecíamos, e agora está na fila do transplante de rins. Eu pegue e minha filha de nove anos pegamos e tivemos sintomas leves. O meu filho de 19 anos, que cursa medicina, não pegou.

Júlia Marques, diretora do Hospital 28 de Agosto, de Manaus - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Marques, diretora do Hospital 28 de Agosto: decisões divididas com a equipe
Imagem: Arquivo pessoal

Quais foram as suas primeiras medidas ao tomar posse?

Quando cheguei, os casos de covid tinham caído um pouco. Aí buscamos organizar os outros setores. Temos um grande pronto-socorro geral, com demandas de todas as especialidades. Uma das primeiras coisas que fizemos foi colocar um aparelho de tomografia que estava quebrado para funcionar. Depois, comprei outro.

Como se faz o planejamento de uma situação que é tão incerta?

Em dezembro, quando aumentaram os casos, montamos um gabinete de crise, que é atuante até hoje. É composto por representantes de todas as especialidades médicas. Primeiramente, fazíamos essas reuniões semanalmente para decidir o que fazer. "Vamos expandir leito, está todo mundo de acordo? Vamos reduzir na ortopedia e aumentar na covid, tudo bem?". Todas as decisões eram tomadas em conjunto, pactuadas, registradas em ata e executadas. Quando piorou, as reuniões passaram a ser diárias, e em determinados momentos o comitê se reunia de três a quatro vezes por dia. Sempre tivemos muito apoio do governo também. Em certo ponto, a situação era tão desesperadora que o secretário de estado foi, em um domingo, ajudar a montar camas no hospital. O problema é que a pandemia mudou. Quando passou a primeira onda, sabíamos o que era a covid. Entretanto, em dezembro, a velocidade de internação cresceu muito, com mais pacientes jovens, que passam mais tempo no hospital.

Qual é o seu estilo de liderança?

É todo mundo junto. Porque juntos somos mais fortes. Estou há 17 anos na gestão, e não tem nada de cima para baixo, tem que ser na horizontal, colocando as pessoas perto. Quando colocamos um profissional para participar da decisão, a postura dele muda. Participo de todos os grupos de WhatsApp do hospital: limpeza, segurança, manutenção, enfermagem, fisioterapia. Quando alguém reclama de alguma coisa, entro na conversa e falo que estamos tomando providências. Sou bem participativa, gosto de informar, de dar o feedback para o funcionário.

Júlia Marques, diretora do Hospital 28 de Agosto, de Manaus - Divulgação - Divulgação
Cilindros de oxigênio: falta do gás na cidade foi o pior momento da pandemia
Imagem: Divulgação

A crise do oxigênio, que o Brasil inteiro acompanhou, foi o dia mais difícil da pandemia para o hospital?

Foi. Dia 14 de janeiro. Mas queria esclarecer. Não faltou oxigênio no 28 de Agosto, que é o maior hospital de Manaus. No hospital existe uma rede de oxigênio, o gás não fica em balas [cilindros] individuais. Os pacientes ficam nos pontos de oxigênio na parede. Naquele dia fatídico, o gabinete de crise se reuniu às 7h. Estávamos esperando uma tragédia. Mas houve muitas doações, começou a chegar oxigênio de toda parte. Colocávamos dois, três pacientes no mesmo ponto na parede. Não deixamos de atender ninguém. Porém, a certa altura, para entrar no hospital tinha que trazer a sua própria bala de oxigênio porque não tinha mais pontos disponíveis. O 28 estava respirando por aparelhos. Mas sobreviveu. O maior número de mortes tivemos em 10 de janeiro, e não no dia 14, porque os pacientes não estavam morrendo por falta de oxigênio - estavam morrendo porque é uma doença muito violenta.

Internamente, como estava o clima?

Do dia 14 para o 15, não saímos do hospital. Viramos a noite lá. Tenho uma equipe maravilhosa, ninguém largou a mão de ninguém aqui. Ficamos na madrugada. Quando chegava o caminhão com um pouquinho de oxigênio, a gente vibrava, porque tinha medo, sim, de que acabasse ali também. Havia 350 pacientes covid e 72 não-covid internados.

Como tem administrado a saúde mental dos funcionários?

Perdemos quatro colaboradores na pandemia, inclusive o chefe da unidade de queimados, que era muito querido. Quando começou a pandemia, a organização Médicos Sem Fronteiras disponibilizou psicólogo para a equipe. Procuramos ficar sempre muito perto do time, porque tem dias em que a gente está bem e em outros não. Trabalhamos dois meses direto, sem intervalo, a partir de meados de dezembro. Agora, já se fala em terceira onda, estamos nos preparando.

Que preparação é essa?

Chamei os gerentes e falei: todo mundo se organiza para revezar e tirar três ou quatro dias de folga com a família para ganhar um fôlego. Se vier a terceira onda, precisamos estar bem. Não deixei desmontar nada da estrutura que havíamos montado: a câmara frigorífica alugada para colocar os corpos ficou, assim como a tenda que montamos em frente ao hospital para acolher as famílias.

E a sua saúde emocional, como está?

No pico da pandemia, nem eu tinha estrutura emocional. Foi na fé mesmo. Todos os dias eu tinha vontade de desistir, mas aí eu chegava no hospital, via a equipe tão empenhada, não dava para desistir. Minha família nunca me disse para desistir. Pelo contrário. Dizia: 'Segue em frente! Tu consegue! Tu é forte!' [chora]. Tento sempre jantar com o meu marido e os meus filhos, eles me esperam. Depois vamos dormir, não dá tempo para muita coisa mais. Na crise do oxigênio, eu tinha sonhos recorrentes de que estava com falta de ar. Mas era ansiedade.

Qual foi a maior lição que aprendeu nesta crise?

Aprendemos a ter um pouco mais de autocontrole. A equipe ficou mais unida. No momento em que dava vontade de desistir, um olhava para o outro e pensava: 'Não vou te deixar aqui'. Nem a gente sabia o quanto é forte.

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