'Cortes' do Marçal: internet virou playground de trabalho sub-remunerado
Na mira da Justiça Eleitoral, a gincana dos "cortes" de vídeo organizada pelo coach Pablo Marçal mostra como a internet se transformou em uma mistura de playground virtual com mercado de trabalho precarizado.
A estratégia do candidato do PRTB à Prefeitura de São Paulo adapta para a política aquilo que as big techs fazem há anos: arrebanhar uma multidão de pessoas a serviço de seu modelo de negócios. Às vezes, de graça. Às vezes, por (bem pouco) dinheiro. E, não raro, em nome de uma suposta diversão.
O que aconteceu?
Para quem só ouviu falar por cima dessa história, aí vai um breve resumo. Por meio de redes sociais, como a Discord, a campanha de Marçal vem organizando uma espécie de campeonato com centenas de milhares de seguidores.
O objetivo é mobilizar um exército de editores de vídeo amadores para despejar na internet uma avalanche de posts audiovisuais virais — os tais cortes. Eles são produzidos a partir de participações de Marçal em debates, comícios e outros compromissos.
Ganha a brincadeira, e um prêmio de algumas centenas de reais, quem alcançar mais visualizações. Com sua retórica de vendedor de milagres, o candidato do PRTB garante ainda que tem gente faturando até R$ 600 mil com a monetização dos vídeos nas redes sociais — valor pouco verossímil, para dizer o mínimo.
Por entender que a gincana feria a legislação eleitoral, a Justiça tirou do ar, na semana passada, perfis envolvidos na competição.
Gamificação, crowdsourcing e trabalho por esperança
A "indústria de cortes" de Marçal segue a típica receita de bolo do trabalho precarizado por plataformas do século 21. Primeiro, cria-se uma tarefa simples, rápida e rasteira. Se ela puder ser anunciada como um desafio ou uma zoeira, melhor ainda.
Não à toa, os conceitos de "gamificação" (transformar em game o que não é necessariamente um jogo) e de "playbor" (juntar play com labor, ou seja, brincadeira com trabalho) são tão caros às técnicas de RH contemporâneas. A ideia é fazer a pessoa pegar no batente sem sentir que está ralando.
Depois, o "job" é executado por meio do que se convencionou chamar de "crowdsourcing": a terceirização de um serviço para uma multidão. Essa lógica vale para as corridas ofertadas a motoristas e entregadores de Uber e iFood, mas tem nas empresas de microtarefas a sua expressão mais bem acabada.
A mais famosa delas é a Amazon Mechanical Turk, parte do conglomerado fundado por Jeff Bezos. Basicamente, a plataforma recruta gente de verdade para realizar algumas atividades banais que robôs ainda não conseguem fazer.
Em geral, os trabalhadores recebem centavos por microtarefas muito simples, como classificar produtos por cor ou tamanho, em apenas um clique. Mas é possível também fazer crowdsourcing para trabalhos mais complexos — a indústria de cortes de Marçal que o diga.
Por fim, o sistema do coach bebe ainda de outra fonte típica destes tempos digitais: o trabalho por esperança. Estamos falando dos profissionais, principalmente os da chamada "indústria criativa", que encaram frilas mal pagos ou até mesmo não remunerados só para fazer currículo. É o pessoal que trabalha de graça, em troca de experiência e exposição, com o sonho de abrir portas no futuro.
O próprio Marçal é produto desta engrenagem, reflexo de um mercado de trabalho cada vez mais polarizado. De um lado, uma pequena minoria com cargos bem remunerados e prestigiados. De outro, uma imensa maioria com ocupações precárias e descartáveis.
O empreendedorismo "fé em Deus e pé na tábua", que fez do coach candidato um fenômeno das redes sociais, promete a redenção a quem der duro. Que tal começar trabalhando de graça com edição de vídeos para uma campanha eleitoral?
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