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Reinaldo Polito

Será que ministro da Educação chamar Kafka de cafta é tão grave assim?

08/05/2019 12h07Atualizada em 10/06/2019 15h36

Caro ministro Abraham Weintraub, tudo bem? Acompanhei seu discurso ontem na reunião do Senado com os membros da Comissão de Educação. Gostei muito da sua participação, especialmente pela forma veemente e, em certos momentos, até indignada como se expressou. Seu relato sobre a maneira como foi perseguido na Unifesp chega a ser revoltante.

Fiquei surpreso ao notar, lá pelas tantas, que vossa excelência --ops, esse tratamento está abolido por decreto presidencial, certo? Ou não vale apenas para quem integra o governo federal? Bem, não vamos perder tempo com isso agora. Como eu dizia, lá pelas tantas, notei que o senhor cometeu um ato falho: em vez de dizer "Kafka", autor do livro a que se referia, disse "cafta", nome de uma comida árabe.

Na hora eu pensei: será que o ministro vai se incomodar com uma besteirinha dessa? Será que vai ficar se remoendo só porque trocou uma letrinha, uma mísera letrinha? Sim, porque se pensarmos bem, as sílabas "ka" e "ca" nesse caso possuem o mesmo som, a única mudança foi a troca do "k" da última sílaba pelo "t". O senhor disse o seguinte, ministro:

"Eu sofri na pele um processo inquisitorial. E fui inocentado. Durante oito meses eu fui investigado, processado e julgado num processo inquisitorial e sigiloso. Que eu saiba, só a Gestapo fazia isso. Ou no livro de 'cafta' ou na Gestapo".

A galera não perdoou

Eu me surpreendi com a reação da galera. A turma se aproveitou do deslize para fazer brincadeiras nas redes sociais. Não que não tenha sido engraçado, mas acho que alguns chegaram a pegar pesado demais. Afinal, que atire a primeira pedra quem nunca deu uma derrapada na vida. Por isso, pensei bem e resolvi escrever esta carta para termos uma conversa. Sei que está sempre muito ocupado, mas prometo que será rapidinho.

Ministro, quer um conselho? Não liga para isso, não. Daqui a pouco, ninguém mais vai se lembrar do fato, a não ser que o senhor mesmo queira insistir em remoer essa besteirinha. Eu sei que uma escorregadela como essa, vinda de um ministro da Educação, acaba tendo peso maior, mas, cá entre nós, não deixa de ser um somenos.

Gafes históricas

Para tranquilizá-lo, vou relatar alguns fatos que foram infinitamente mais graves que o seu, mas hoje quase ninguém se lembra do ocorrido.

Um deles aconteceu com o ex-presidente Michel Temer quando visitava Oslo, capital da Noruega. Lembra-se desse caso? Talvez pressionado pelo corre-corre da viagem, acabou se desconcentrando e chamou Harald 5º, rei da Noruega, de rei da Suécia. E, se não bastasse, já que desgraça pouca é bobagem, o raio caiu duas vezes no mesmo lugar. No mesmo discurso, logo após ter cometido a primeira gafe, Temer se referiu ao "Parlamento norueguês" como sendo "Parlamento brasileiro".

Outra pisadinha no tomate que ficou para a história foi protagonizada pelo presidente americano Ronald Reagan quando visitou o Brasil, em 1983. Acho que o senhor era muito novo para se lembrar dessa história. Ao brindar "o povo brasileiro", meteu os pés pelas mãos e desejou "saúde ao povo da Bolívia". Eu e o senhor sabemos que geografia não é um atributo forte dos americanos, mas, exceto pelo fato de os dois países começarem com a letra B e ficarem na América do Sul, não há muito mais para se enganar. Concorda?

Quer mais, ministro? Esta tem chancela francesa. O presidente francês Jacques Chirac, com todo seu charme parisiense, ao traçar um brevíssimo currículo do presidente Fernando Henrique Cardoso, disse que ele era presidente do México. Ah, e Fernando Henrique não pode rir da desgraça alheia, pois ele mesmo se referiu certa vez aos bolivianos como sendo peruanos.

Conselho dado. Vida que segue

Portanto, caro ministro Weintraub, saiba que esses atos falhos acontecem com as melhores famílias. Nem precisamos aqui entrar em pormenores, tentando explicar o significado exato de ato falho, muito menos querer entrar em searas que não me competem, especialmente com os conceitos freudianos da "parapraxias" que remetem às origens do inconsciente. Com o pé no chão, podemos entender que é algo que dizemos quando a intenção era dizer outra coisa.

Tenho certeza de que nos entendemos, ministro. Vida que segue. Mas, se me permite fazer uma brincadeira, só fico aqui pensando como o autor de "A metamorfose" se contorceu no túmulo ao ser confundido com um pedaço de carne moída, devidamente amassada, regada com especiarias e farinha de trigo e assada num espeto. Bem, para quem transformou um homem num inseto, um bolinho de carne não chega a ser nada.

Boa sorte aí, ministro. Muito obrigado pela atenção. Vamos arrumar grana para a educação, cuidar dos cursos básicos, sem esquecer das universidades, e transformar os brasileiros num povo mais bem-preparado, porque essa de ficar na rabeira quando se faz avaliação internacional de desempenho dos estudantes já cansou, né? Chega de passar vergonha.

Superdicas da semana:

  • Se cometer uma gafe, não se martirize com isso. Passe a régua e feche a conta
  • Aprenda a brincar com seus próprios deslizes não se levando muito a sério
  • Se você rir de si mesmo, enfraquece a força de quem pretendia ridicularizá-lo
  • Os erros aparecem mais quando estamos cansados ou sob pressão
  • Quando estiver se sentindo assim, respire fundo e procure se acalmar

Livros de minha autoria que ajudam a refletir sobre esse tema: "29 Minutos para Falar Bem em Público", publicado pela Editora Sextante. "As Melhores Decisões não Seguem a Maioria", "Oratória para advogados", "Assim é que se Fala", "Conquistar e Influenciar para se Dar Bem com as Pessoas" e "Como Falar Corretamente e sem Inibições", publicados pela Editora Saraiva. "Oratória para líderes religiosos", publicado pela Editora Planeta.

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Errata: este conteúdo foi atualizado
Uma versão anterior deste texto afirmava que, na obra "A Metamorfose", um humano é transformado em uma barata. Na verdade, não é possível afirmar que se tratava de uma barata. O texto foi alterado.