O caminho da reforma

Bate-boca, recuos e polêmicas: a trajetória da Previdência, bandeira do governo Bolsonaro

Ricardo Marchesan Do UOL, em São Paulo Pedro Prado/UOL

Mudança histórica

A preocupação com o rombo da Previdência é antiga, e mudanças nas regras de aposentadoria não são novidade. Os ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso, Lula e Dilma Rousseff fizeram as suas reformas. Michel Temer tentou, mas não conseguiu. Nenhuma delas, porém, alterou tanto a aposentadoria quanto a aprovada pelo Congresso agora.

O caminho que essa reforma seguiu foi longo e turbulento. No Congresso, a discussão durou cerca de oito meses, e os debates foram acalorados, inclusive com troca de ofensas. Nas ruas, protestos contra e a favor mobilizaram a população. Afinal, mudar as regras sobre quando o cidadão poderá parar de trabalhar e quanto irá receber é algo, no mínimo, controverso.

Seja contra ou a favor da reforma, é inegável que sua aprovação é histórica. O UOL recapitula o caminho que ela levou para chegar até aqui.

Relembre dez momentos da reforma da Previdência

Temer e Meirelles começaram...

Quando Temer assumiu após o impeachment de Dilma, sua equipe econômica, liderada por Henrique Meirelles, então ministro da Fazenda, colocou a reforma da Previdência como uma das metas, ao lado da trabalhista. A reforma trabalhista foi aprovada em 2017, mas a da Previdência ficou pelo caminho.

A instabilidade política, incluindo denúncias de corrupção contra Temer e protestos contrários, pesou. Sem conseguir os votos necessários no Congresso para fazer mudanças na Previdência, Temer decidiu focar na reforma trabalhista, mais fácil de ser aprovada.

Após meses tentando convencer os deputados, Temer decretou intervenção federal na segurança pública do Rio de Janeiro, em fevereiro de 2018. A Constituição determina que nenhuma emenda ao seu texto, como era o caso da reforma, pode ser feita durante uma intervenção federal. Com as eleições presidenciais batendo à porta, a reforma ficava para o próximo governo.

... Bolsonaro e Guedes continuaram

Nos meses após a eleição, e antes de tomar posse, o presidente Jair Bolsonaro chegou a cogitar trabalhar para que ao menos parte da reforma da Previdência fosse aprovada ainda nos últimos meses do governo Temer, mas isso não foi possível.

A reforma foi, então, colocada como prioridade da equipe econômica, liderada pelo novo ministro da Economia, Paulo Guedes. A meta de Guedes era que a reforma economizasse ao menos R$ 1 trilhão em dez anos para os cofres públicos.

Mesmo o presidente, que, ao longo da trajetória como deputado federal, havia se posicionado contra mudanças nas regras de aposentadoria, agora mostrava total apoio às ideias de seu "posto Ipiranga", como se referia a Guedes durante a campanha eleitoral.

Em 20 de fevereiro, o presidente foi pessoalmente ao Congresso entregar sua Proposta de Emenda à Constituição. Repetia, assim, o gesto de seu principal adversário político: o ex-presidente Lula também foi ao Congresso levar sua proposta de reforma da Previdência, em 2003. Assim como hoje, ela seria aprovada no mesmo ano.

Apesar de nova, a proposta de Guedes e Bolsonaro trazia algumas das ideias do texto de Temer, como a criação de uma idade mínima para todos os trabalhadores se aposentarem. Outras, porém, foram novidade, como a criação de um sistema de capitalização, em que o trabalhador poupa para a própria aposentadoria, diferente do que é hoje, em que quem está no mercado financia quem já se aposentou.

Isso [reforma] só não foi possível porque houve uma urdidura, uma trama de tal natureza que foi depois desvendada, ou seja, os meus detratores, aqueles que urdiram a trama, acabaram presos

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Michel Temer, referindo-se à gravação de sua conversa com Joesley Batista

Temos que juntos mostrar [...] que erramos no passado. Eu errei no passado e temos a oportunidade ímpar de realmente garantir para as futuras gerações uma previdência onde todos possam receber

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Jair Bolsonaro, sobre ter sido, no passado, contra a reforma

A Previdência é uma fábrica de desigualdades. Quem legisla tem maiores aposentadorias. Quem julga tem as maiores aposentadorias, e o povo brasileiro, as menores

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Paulo Guedes, justificando a necessidade da reforma

As primeiras polêmicas

A princípio, Bolsonaro teria mais força do que Temer para conseguir aprovar sua reforma, já que havia sido eleito há pouco tempo e contava com uma base de apoio na população, além de parlamentares abertamente favoráveis a mudanças na aposentadoria terem sido eleitos na esteira do presidente.

Ainda assim, o caminho não seria tranquilo ou livre de polêmicas.

Logo de cara, mudanças no Benefício de Prestação Continuada (BPC), pago a idosos e deficientes pobres, e na aposentadoria rural geraram críticas de opositores e mesmo de deputados favoráveis, como o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), que também colocou em dúvida a capitalização. Todas essas mudanças caíram posteriormente.

Os deputados também cobraram que o governo enviasse ao Congresso o projeto de reforma da Previdência dos militares, que seria feita separadamente. A proposta foi levada por Bolsonaro à Câmara em março, mas não ficou livre de críticas, principalmente por causa do baixo valor que economizaria.

O Ministério da Economia foi criticado pela falta de transparência, por ter decretado sigilo sobre estudos e pareceres técnicos que embasaram o projeto. O governo se defendeu dizendo que eram documentos preparatórios e que se tornariam públicos mais adiante.

Outro ponto polêmico foi a liberação de verbas parlamentares em meio às discussões sobre a reforma, já que Bolsonaro repetidas vezes havia dito que acabaria com a "antiga política" e com o "toma-lá-dá-cá".

Se a gente tivesse condição, a maioria [dos deputados] já tirava na CCJ [as mudanças] no BPC e na aposentadoria rural. Mas eu tenho certeza, pelo que ouço dos líderes, de que elas não vão sobreviver em hipótese nenhuma

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Rodrigo Maia, sobre as mudanças que a Câmara faria no texto da reforma

O que quero dos senhores é sacrifício também. Faremos, sim, uma nova Previdência que atingirá os militares, mas não deixaremos de lado, não esqueceremos, as especificidades de cada Força

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Jair Bolsonaro, sobre a reforma dos militares, que tramita separadamente

Há dois meses eu estou dizendo a vocês que, por ocasião da comissão especial, quando vamos discutir o mérito [da proposta], nós iremos decodificar e refinar os dados. Nós não estamos negando [o acesso]

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Rogério Marinho, secretário especial de Previdência e Trabalho, sobre sigilo de estudos

Guedes, Maia e deputados batem boca

Os primeiros meses de discussão na Câmara foram tensos, com atrito entre parlamentares e o ministro da Economia.

Ele recusou um primeiro convite da Comissão de Constituição e Justiça para participar de audiência pública sobre o tema, o que irritou deputados.

Quando compareceu, houve troca de farpas, e o encontro terminou em confusão, após o deputado Zeca Dirceu (PT-PR) provocar o ministro usando os termos "tigrão" e "tchutchuca", em referência a uma música de funk popular no início dos anos 2000. Guedes ficou nervoso e respondeu, aos gritos de "tchutchuca é a sua mãe e a sua avó".

Papel-chave de Maia

O governo acabou entrando em rota de colisão, também, com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, após um dos filhos do presidente, o vereador Carlos Bolsonaro (PSC-RJ), fazer ataques a ele nas redes sociais.

Maia rebateu dizendo que o governo era um "deserto de ideias" e ameaçando deixar a articulação política. Era ele quem encabeçava a articulação a favor da reforma, em meio ao relacionamento difícil de Guedes com deputados e à falta de coesão da base de apoio ao governo. Apesar de não abandonar esse papel após a troca de críticas, Maia cobrou mais participação do governo.

O tom voltou a subir pouco tempo depois, após o relator na comissão especial, deputado Samuel Moreira (PSDB-SP), fazer mudanças no texto que diminuíram a previsão de economia. Guedes disse que os cortes foram maiores do que o esperado e que a reforma corria o risco de ser abortada.

O presidente da Câmara rebateu e classificou as críticas de Guedes como injustas, afirmou que os R$ 900 bilhões estavam perto do R$ 1 trilhão desejado pelo governo e que era "uma grande economia para um governo que não tem base".

Na noite em que a reforma seria aprovada em primeiro turno na Câmara, líderes dos partidos fizeram discursos exaltando o papel de Maia, e pouco destacaram o papel do governo.

Há algo bem errado que não está certo!

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Carlos Bolsonaro, compartilhando resposta de Sergio Moro sobre decisão de Maia de não priorizar pacote anticrime

O governo é um deserto de ideias

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Rodrigo Maia, criticando o governo e subindo o tom de seu discurso após a afirmação do filho de Bolsonaro

Agradeço [...] o comprometimento do presidente Rodrigo Maia

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Jair Bolsonaro, em aceno ao presidente da Câmara, após aprovação da reforma em comissão da Câmara

Protestos contra e a favor

Desde que o projeto do governo foi apresentado, até a sua aprovação em primeiro turno, o Brasil viu alguns protestos contra a reforma, liderados pela oposição. Críticas à reforma apareceram ao lado de outras pautas, como nas manifestações contra cortes na educação. Os atos antirreforma, porém, não tiveram o mesmo peso dos que aconteceram no governo Temer.

Para conseguir o apoio da opinião pública, o governo recorreu a ações de merchandising em programas de TV aberta, usando apresentadores como Ratinho e Luciana Gimenez. Um protesto a favor do governo, em maio, teve em sua pauta a defesa da reforma. Isso foi usado como argumento por parlamentares a favor da reforma.

Por outro lado, grupos e categorias específicas fizeram lobby, pressionando por mudanças a seu favor no projeto.

Em manifestação na Câmara, um grupo de policiais chegou a chamar Bolsonaro de "traidor". Eles pediam uma regra de transição específica. Após o ato, o presidente articulou para que fossem atendidos, e um acordo foi costurado na Câmara para que a categoria conseguisse regras mais brandas.

Até aquele momento, o texto inicial do governo já havia sido bastante modificado. As mudanças iniciais previstas no BPC e na aposentadoria caíram, assim como a possibilidade de capitalização. O tempo necessário para mulheres contribuírem diminuiu, assim como o dos homens que já estão no mercado de trabalho. Além disso, os servidores públicos dos estados e municípios foram excluídos da reforma, entre outras alterações.

No Senado, o texto ainda passaria por novas mudanças, que reduziram a previsão inicial de economia em dez anos de R$ 1,237 trilhão para perto de R$ 800 bilhões.

Reforma passa pelo Congresso

Apesar de todas as dificuldades, a reforma da Previdência foi aprovada em primeiro turno na Câmara, em julho, com um placar mais folgado do que o previsto inicialmente, sinalizando que o resto da tramitação seria mais fácil. Ficava claro que o projeto dificilmente seria rejeitado nas etapas seguintes.

Ainda assim, o calendário não estava imune a atrasos. Praticamente ao longo de todo o processo, desde que chegou ao Congresso, as votações tiveram atrasos nas datas inicialmente marcadas. O segundo turno na Câmara ficou para agosto, após o recesso parlamentar, enquanto o fim da tramitação no Senado, previsto para 10 de outubro, foi postergado por quase 15 dias.

Se praticamente não havia mais margem para rejeição do texto como um todo, no Senado ele seria alterado mais do que o governo gostaria.

Os senadores se comprometeram a não fazer grandes alterações no projeto, caso contrário ele teria de voltar para nova análise da Câmara. Eles poderiam, porém, retirar alguns pontos no texto principal, e foi o que fizeram.

Uma das mudanças mais emblemáticas aconteceu no primeiro turno no Senado. Os parlamentares retiraram mudanças no abono salarial, reduzindo a previsão de economia em R$ 76,4 bilhões, o que foi considerada uma derrota para o governo, que não conseguiu os votos necessários.

A vitória maior do governo, porém, estava garantida, e a reforma foi aprovada mesmo em meio à ruptura interna do partido de Jair Bolsonaro, o PSL, apontada como a maior crise política em seu primeiro ano de governo.

Mais mudanças em PEC paralela

Apesar da aprovação final, a discussão sobre mudanças na aposentadoria ainda não acabou.

Como parte do acordo para que os senadores não mudassem o texto, ficou decidido que eles criariam um projeto paralelo, com mais alterações na Previdência, entre elas a inclusão de servidores de estados e municípios na reforma. Ela ficou conhecida como PEC paralela e ainda vai tramitar no Congresso.

Além disso, a reforma dos militares também deve ser discutida pelas duas Casas.

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